A Contestação ao Centenário Antoniano de 1896

A anticlericalismo português não diferiu, no essencial, dos congéneres europeus. Foi um fenómeno tipicamente urbano e elitista , resultante da tecnização, da crescente qualificação profissional e da afirmação de tendências heterodoxas, para utilizarmos uma expressão consagrada por Menéndez y Pelayo: galicanismo, episcopalismo, enciclopedismo, iluminismo No caso português, a expulsão da Companhia de Jesus marcou o inicio de um vasto conjunto de medidas que o poder político tomou ao largo do século XIX, para limitar a acção da Igreja em geral e das ordens religiosas em particular. Essa tendência ganhou novo fôlego com a revolução liberal de 1820 e, de um modo mais determinado e irreversível, após a vitória liberal de 1834. A legislação que suprimiu as ordens religiosas e iniciou a desamortização foi a pedra angular na política de ingerência do Estado na vida da Igreja, mas essa intromissão não ficou por aí. Recordemos, a propósito, a nomeação sistemática de governadores temporais para bispados cujos prelados, fiéis a D. Miguel, os haviam abandonado, com a recomendação aos respectivos cabidos para que os elegessem vigários capitulares. Gerou-se assim um prolongado conflito que alguns autores não hesitaram em classificar de cisma, e que toldou, durante muitos anos, as relações entre Portugal e a Santa Sé. Paralelamente foram dados os primeiros passos para a instituição de um registo civil, num processo iniciado com o decreto de 16-5-1832 e com a reforma administrativa de 18-7-1835, embora ficasse ainda por percorrer um longo caminho que culminaria coma lei de 28 de Novembro de 1878, que regulamentou efectivamente o registo civil.
O anticlericalismo assumiu, com frequência, a forma de ataques focalizados a aspectos concretos e acessórios da vida eclesiástica, com os quais se procurava estabelecer um contraste entre a vida dos sacerdotes e o quotidiano «normal». O celibato, a sacralização de actos como o nascimento - através do baptismo - o casamento e a morte, os votos perpétuos eram criticados em vários níveis, da literatura ao folheto anónimo e de gosto duvidoso, género que tanta popularidade alcançou, na segunda metade do século XIX, nos países latinos e também entre nós. A ofensiva contra a Igreja como instituição começava a confundir-se com a crítica aos seus fundamentos. O anticlericalismo pretendia construir uma concepção da sociedade, da cultura e da própria vida antagónica e alternativa ao catolicismo, sobrevalorizando a ciência, que era apresentada como antítese da religião ; a difusão de publicações que pretendiam provar a incompatibilidade entre o progresso e a religião era urna vertente dessa oposição que se procurava estabelecer, utilizando aspectos secundários e superficiais promovidos a fundamentais. Evocavam-se a cada passo a Inquisição, as perseguições religiosas através da História, os mártires provocados pelo fanatismo, a vida dissoluta dos papas, como se fossem elementos essenciais do catolicismo. A imprensa anticlerical e os almanaques do registo civil e do livre-pensamento surgiam povoados de ilustrações grosseiras e primárias, representando torturas terríveis em interrogatórios que tinham como cenário tenebrosas masmorras inquisitoriais, em poses que desafiavam as leis da Física, tudo com o objectivo de provocar urna reacção emocional por parte do observador e de a potenciar na luta contra a Igreja e os seus representantes. Ao mesmo tempo exaltavam-se figuras relacionadas com o anticlericalismo e vítimas da intolerância religiosa como Giordano Bruno, António José da Silva e Garcia de Orta, criando-se desse modo urna hagiografia laica alternativa e concorrente com os hagiológios cristãos. A celebração do centenário da morte do marquês de Pombal, em 1882, assumiu um significado muito especial, enquadrando-se na lógica comemorativista adoptada pelos positivistas portugueses
O anticlericalismo em Portugal foi animado, no plano organizativo, por diversas associações que floresceram com maior ou menos vitalidade e duração a partir do último quartel de oitocentos. Em 18 de Novembro de 1876, surgiu a Associação Promotora do Registo Civil , com uma forte influência positivista. Esta era, aliás, urna característica comum nessa época - a participação activa dos mais destacados positivistas em prol do registo civil, numa linha de actuação que tinha como objectivo último «libertar» os indivíduos e a sociedade da influência religiosa, modificando desse modo comportamentos individuais e colectivos. Mais tarde surgiram outras agremiações do mesmo tipo como a Associação dos Livres-Pensadores (1880), resultante da fusão da Liga dos Positivistas Luso-brasileiros e do Círculo dos Bibliógrafos Portugueses . Na Associação Propagadora do Registo Civil (1885), a mais importante e duradoura de todas, estarão presentes elementos republicanos e positivistas como Teixeira Bastos, a par de socialistas da facção de Azedo Gneco, incluindo este polémico dirigente operário, e socialistas heterodoxos como Guedes Quinhones, que publicará, em 1898, uma colecção de folhetos anticlericais intitulada Folhas que Voam, com títulos sugestivos e ao gosto da época . Republicanos e socialistas de várias tendências estão unidos, mas, embora seja indiscutível que os segundos começam a ter um crescente protagonismo no movimento anticlerical a partir da década de oitenta, as figuras provenientes do republicanismo eram determinantes pelo seu prestigio nacional, pelo menos naquele tipo de estruturas claramente elitistas. O papel da maçonaria foi também significativo, desempenhando uma fungão transversal em relação aos diferentes grupos e correntes ideológicas empenhadas no combate à Igreja.
A esse clima de agitação anticlerical há que acrescentar a ressaca do 31 de Janeiro de 1891, com o refluxo do Partido Republicano de que só virá a recuperar em 1896, com a constituição do Grupo Republicano de Estudos Sociais, a crise económica que se agudizou nos anos noventa, a lenta implantação de novas ideologias, nomeadamente do anarquismo, e a rivalidade entre os partidos monárquicos, agravada pelo governo de Hintze Ribeiro, conhecido pelos seus adversários pela «ditadura Hintze-Franco» (1893 - 1897), numa alusão ao Ministro do Reino, João Franco.
Era, pois, natural, que as comemorações antonianas de 1895 assumissem urna dimensão e um significado que transcendeu largamente a celebração de uma grande figura da Igreja e da História de Portugal.

1. As Comemorações Antonianas de 1895
As festividades foram precedidas de uma longa preparação que se processou em diversos níveis. A 13 de Junho de 1894 era instalada a Grande Comissão Central de Lisboa, sob a presidência honorária da rainha D. Amélia, integrando algumas centenas de personalidades com destaque para a fina flor da aristocracia encabeçada pelo duque e duquesa de Palmela e pelo duque de Loulé. Dela ainda faziam parte políticos, eclesiásticos, dirigentes de associações e outras personalidades como Rafael Bordalo Pinheiro e Ramalho Ortigão. A Comissão Executiva era formada pelo marquês de Pombal (presidente), conde de Ávila (secretário), conde de Burnay (tesoureiro) e pelos vogais marquês de Fronteira. Júlio Augusto de Oliveira Pires e Carlos da Silva Pessoa . Por decreto de 19 de Julho de 1894, o centenário foi declarado festa nacional. Ao mesmo tempo, noutros países, em especial em Itália, preparavam-se igualmente celebrações. A 14 de Fevereiro de 1894 era fundada a Pia União de Santo António , que tinha como porta-voz em Portugal o jornal Voz de Santo António, sediado em Montarial, Braga, cujo número inaugural saiu em Fevereiro de 1895.
A 5 de Maio de 1895, D. José III, Cardeal Patriarca de Lisboa, publicou uma carta pastoral sobre a celebração do VII Centenário de Santo António, cujo programa já tinha sido divulgado em Março, nas sua dupla componente religiosa e profana . Após evocar a proclamação por Leão XIII de Santo António «Santo de todo o mundo», salientava a sua importância na história de Portugal e a atenção que lhe dedicaram diversos monarcas lusos, de Sancho 1 a Afonso VI, concluindo que «sim, amado filhos, Portugal não seria tão grande sem António de Lisboa; e S. António não teria sido tão grande sem a fé de Portugal». Depois, apelava ao povo de Lisboa para que celebrasse condignamente a efeméride que se aproximava e anunciava o programa das celebrações religiosas que decorriam entre 13 e 23 de Junho, compreendendo uma festa na Real Casa de Santo António, sermões, exposições e bênção como Santíssimo na Sé Patriarcal, Santo António e S. Vicente de Fora, Comunhão geral (no dia 23, na mesma igreja). Informava ainda que o Papa concedera diversas graças e indulgências à cidade de Lisboa, as quais eram enumeradas.
Posteriormente foi publicado um apêndice à carta pastoral acima referida, que antecedia uma carta de Leão XIII dirigida ao Cardeal Patriarca, datada de 2 de Maio, onde o Sumo Pontífice apoiava outra ideia entretanto surgida: «entre tudo quanto tendes planeado para engrandecer a celebridade das festas julgamos que muito avisada e sabiamente pensais em reunir em Lisboa um Congresso Católico Internacional» . De facto, esta ideia tinha sido ventilada na última conferência dos prelados portugueses e fora acarinhada pela comissão organizadora dos festejos antonianos. A 19 de Março de 1895 foi aprovada e tornada pública uma carta-convite a todos os interessados em participar no referido congresso, que se realizaria em Lisboa, nos dias 25 a 28 de Junho, em S. Vicente de Fora . A comissão organizadora, presidida pelo Cardeal Patriarca, com o Arcebispo de Mitilene como Vice-Presidente, integrava ainda diversas individualidades - algumas das quais faziam simultaneamente parte da Grande Comissão Central de Lisboa, como o marquês de Pombal, o duque de Ávila e o conde de Burnay - para além de diversos eclesiásticos com destaque para o padre Sena Freitas. O regulamento, no seu Artº 1º, definia os objectivos do conclave: «reunir os católicos de boa vontade para acordarem no meios de arreigar a fé, e desenvolver as obras de religião caridade, educação, associação e liberdade cristã; bem como para se ocuparem das questões sociais que interessam ás classes operárias e às desfavorecidas da fortuna, segundo os princípios do Evangelho e os ensinos de Sumo Pontífice Romano, o Vigário de Cristo» . Ao mesmo tempo, proibia-se qualquer alusão a assuntos que pudessem ofender os poderes constituídos e a questões de política partidária. Tratava-se, claramente, de uma resposta aos ataques de que a Igreja estava a ser alvo. Era evidente a sintonia com a Santa Sé, nomeadamente na preocupação manifestada por Leão XIII pela questão social, de que a Encíclica Rerum novarum (1891) foi momento fundamental.
O centro das festividades era o Terreiro do Paço, decorado com arcos, postes, e um local no centro destinado à exibição de filarmónicas, estudantinas e coros. À noite havia fogo de artificio, pontes luminosas, projecções de luz eléctrica e representação de quadros alusivos a milagres de Santo António. Outras ruas comercias assumiram também a sua quota parte de responsabilidade nas festas, constituindo comissões locais, como sucedeu com as ruas do Ouro, da Prata, Augusta, Ferreira Borges, Retroseiros e do Almada, Vale de Santo António, Mirante, Paraíso, Infante D. Henrique, Rossio, Largo da Estação e Avenida da Liberdade, Mercado da Praça da Figueira, freguesias da Pena e de Santa Engrácia. Ao mesmo tempo, decorriam corridas de touros nas praças de Algés e do Campo Pequeno, uma festa veneziana no Tejo, diversão ginástica e acrobática pelo Real Clube Ginástico, corridas de velocípedes e uma regata internacional . No Teatro D. Amélia realizava-se o espectáculo oficial de gala com a oratória em três actos «Milagres de Santo António», da autoria do falecido actor José Maria Braz Martins. Para além destas iniciativas, as comemorações populares apresentavam uma vertente caritativa, com uma festa da infância - prémios aos melhores alunos, auxilio aos estudantes pobres - e a inauguração do Asilo-Oficina de Santo António, no Bairro Andrade. Uma Exposição de Arte Sacra Ornamental, no Museu Nacional ás Janelas Verdes, era inaugurada no dia 21 de Junho com a presença dos reis, cabendo um papel destacado na sua organização a Ramalho Ortigão . Todo este vasto conjunto de realizações trouxe a Lisboa um grande número de forasteiros, pelo que foram tomadas medidas para os acolher. Desde a redução de bilhetes à publicação de um guia especifico, que teve pelo menos duas edições, as entidades organizadoras dos festejos nada deixaram ao acaso.
Outra componente que não pode ser desvalorizada foi a enorme actividade editorial relacionada com o centenário, tanto em Itália como em Portugal. Neste último caso, o único em apreço neste estudo, publicaram-se largas dezenas de livros , opúsculos, folhetos e folhas soltas, desde estudos eruditos até curiosíssimas manifestações de oportunismo mercantilista e de exploração da superstição popular. Assim, a Perfumaria Lusitana anunciava um «fino sabonete para a pele» como o nome do Santo ; o oculista Ramos & Silva, da Rua da Escola Politécnica, garantia, num panfleto com versos de pé-quebrado, que o êxito do Santo como orador sagrado se devia aos óculos que adquirira naquele estabelecimento. No Porto, publicou-se um folheto contra os «malefícios do demónio e seus sequazes». O Correio da Noite anunciava as «bolachas Santo António». Nos quiosques vendia-se por 20 réis a «Vida e Milagres de Santo António de Pádua». As versalhadas populares eram inúmeras, por vezes musicadas. Veja-se, como exemplos, o «Canto do Povo a Santo António» e o «Canto do Povo dedicado a Santo António» , Carlos Sertório organizou um volume intitulado O Santo António do do Povo, colecção de anedotas, rifões, anexins e poesias alusivas ao Santo, precedida de uma biografia de Santo António . Números especiais de revistas e jornais, do Diário de Noticias ao Ocidente, passando pelo Boletim da Real Associação dos Arquitectos Civis e Arqueólogos Portugueses contribuíram para divulgar, nos mais variados sectores, as comemorações centenárias. O Guia do Forasteiro fornecia ao público interessado um leque variado de informações, os programas preliminares das comemorações, horários de transportes, alojamentos e publicidade. Anunciava-se a publicação de um drama em 4 actos e 8 quadros, da autoria de Campos Júnior, intitulado «Santo António de Lisboa», a cunhagem na Casa da Moeda de uma medalha comemorativa, por iniciativa da Associação Protectora da Infância Santo António de Lisboa, e um hino-marcha com música do maestro Augusto Machado e letra de D. João da Câmara.

2. A Contestação ao Centenário Antoniano
Um programa com tal magnitude não deixaria de suscitar reacções desencontradas na sociedade portuguesa. Do campo monárquico os aplausos foram unânimes, mas o entusiasmo variou consoante a orientação partidária dos periódicos que os veicularam. O contraste entre a Revista Católica e o Correio Nacional era flagrante. Veja-se, por exemplo, o Correio da Noite, vinculado ao Partido Progressista, o qual, no inicio das celebrações escrevia: «Lisboa esteve em plena festa do centenário de Santo António. Os operários do Porto estiveram em greve. Parece, porém que está por pouco o acordo com os patrões, e que a greve terminará por isso mais cedo que as festas. Antes assim». E concluía: «as festas são boas, mas a luta pela vida é difícil» 26. O tom critico é evidente. Mas nada que se compare com as censuras disparadas por outros sectores - republicanos, socialistas, anarquistas - onde o anticlericalismo estava mais arreigado e se manifestava de um modo mais violento e maximalista. Desse campo partirá uma vasta campanha de propaganda contra o centenário, que será um momento decisivo na mudança qualitativa e quantitativa da luta anticlerical em Portugal.
A imprensa socialista, republicana e libertária foi pródiga em artigos contra as comemorações. A Federação, órgão socialista da facção dirigida por Azedo Gneco, classificava-as de «ignóbil mascarada», «arraial de Santo António» e «infame cegada», prevendo «um grande fiasco» para esse «centenário à força» ; e lançava um apelo:
«que nenhum operário consciente se incorpore nem assista ao cortejo religioso do centenário. Que o clericalismo fique consigo próprio e cornos seus cooperadores» . O jornal que mais se distinguiu nos ataques ao centenário foi a Vanguarda, então dirigido por Alves Correia. Os festejos eram apresentados como uma iniciativa da «reacção religiosa», que promovia «uma parada geral das suas forças, obedecendo aos mesmos intuitos que o governo quando mandou efectuar a grande parada da Guarda Municipal» . Numerosos artigos de fundo invectivaram as comemorações apodadas de «centenário jesuítico-orleanista» , de permeio com outros textos de recorte imediatista, demagógico e propagandístico como a secção «os milagres de Santo António», onde se pretendia ridicularizar os milagres atribuídos ao Santo. Do mesmo modo as alusões a certos produtos comercializados no âmbito do centenário - como os «bolos de leite de Santo António» ou as «iscas de Santo António» - serviam os mesmos propósitos. O artigo de Teófilo Braga, «Santo António e o Centenário» , onde aquele escritor pretendia demonstrar o aproveitamento do culto antoniano é uma excepção. Nele, o polémico divulgador do Positivismo chamava a Santo António «famoso taumaturgo que renegou a pátria».
O diário Vanguarda aproveitava as mais pequenas noticias, verdadeiras ou falsas, para alvejar o Centenário. Noticiava, por exemplo, que comissões já constituídas se tinham dissolvido , e que «os buracos abertos no Rossio para colocação dos mastros e estacas têm sido deixados a descoberto dando lugar a sérios desastres» .
Dos eventos que faziam parte do elenco das comemorações, apenas um suscitou algum aplauso das fileiras anticlericais - a inauguração da Vila de Santo António, na Rua da Junqueira, destinada a alojar operários com um mínimo de conforto e de dignidade. O edifício, dividido em duas alas, foi construído em 63 dias no local onde estava um velho pardieiro que servia de depósito de ferragens da administração militar. Possuía refeitório e cozinha, dividida por balcões segundo o modelo das cozinhas económicas, e sobre o refeitório situavam-se 4 dormitórios com 240 camas e 12 retretes por piso. O edifício principal possuía 60 quartos para dormir, com janelas, 4 quarto com lavatórios e arrecadações para roupa. Na retaguarda situava-se um jardim. Do projecto fazia parte a futura construção de outro edifício para hospital e botica. As obras foram dirigidas por Mário Veiga, sob projecto do arquitecto Nicola Bigaglia, e nelas trabalharam 280 operários. A inauguração decorreu a 21 de Junho de 1895, com a presença dos reis, do chefe do governo, ministros, autoridades civis e religiosas, e do mentor da obra, o conde de Burnay, simultaneamente membro da comissão organizadora do Centenário, que no discurso justificou a iniciativa: «se a caridade é a mais doce e luminosa das virtudes humanas, a assistência é, no domínio social, o seu equivalente mais justo» . O diário Vanguarda escrevia que «esta festa constitui, para nós, um facto separado, digno até certo ponto dos nossos aplausos (…) apesar do seu fundador ser o Sr. conde de Burnay, membro da Comissão Jesuítica que promove as burlescas festas em honra do Santo milagreiro» . O mesmo jornal, na descrição do acto, quando um trabalhador deu vivas ao Conde de Burnay, esclarecia que esse operário, um tal António Simões, era «um pobre homem, que depois entrevistámos, e que no seu tipo denotava um caso patológico interessante» ….
A acção dos elementos anticlericais não se ficou pelas páginas da imprensa. Rapidamente tomou corpo a ideia de um protesto mais amplo cuja iniciativa partiu, em primeiro lugar, do Centro Socialista de Lisboa, o qual, no inicio de Junho de 1895, propôs um conjunto de iniciativas paralelas e alternativas às do Centenário: edição de número especial de A Federação, realização de um congresso anticlerical que seria uma resposta ao congresso católico, manifestação ao túmulo de Sara de Matos . Desse programa, o congresso anticlerical constitui o ponto mais significativo.

2.1. O Congresso Anticlerical
Os trabalhos do congresso decorreram entre 25 e 18 de Junho de 1895, em Lisboa, nas salas da Federação das Associações de Classe, na Rua do Benformoso, numa organização conjunta dos centros socialistas de Lisboa e de Alcântara. A sala encontrava-se decorada com retratos de Victor Hugo e de Azedo Gneco, e com inscrições que traduziam as grandes reivindicações dos promotores - «secularização do ensino», «registo civil obrigatório», «liberdade de culto», «separação da Igreja e do Estado». Outra legenda maior servia de fundo - «Pugnar pela verdade, pela ciência e pela paz social: eis a religião do homem civilizado». Coube a Azedo Gneco a abertura dos trabalhos, secretariado por Francisco de Assis e Nunes da Silva. O dirigente socialista reivindicava para o seu grupo o papel de vanguarda na luta contra a influência da Igreja: «o clericalismo é o inimigo da liberdade, portanto o partido socialista não podia ficar indiferente perante as suas reivindicações (…); é ao partido socialista que compete dar batalha a essa seita nefasta (…); se a capital esmaga, o clero embrutece» . Embora os socialistas fossem amplamente maioritários, outros sectores marcaram uma presença que não foi despicienda. Especial menção merecem os órgãos de imprensa aderentes como Vanguarda, A Batalha, onde pontificava Heliodoro Salgado, O Dia, animado pelo republicano e maçon Gomes das Silva, A Federação, porta-voz do grupo de Azedo Gneco, e dos jornais socialistas relativamente equidistantes entre «possibilistas» e «marxistas», A Voz do Operário e A Obra. De registar ainda a presença do jornal anarquista Propaganda.
O número de congressistas oscilou entre 59 na primeira sessão e 84 na última, com predomínio socialista. Entre as figuras mais destacadas daquele partido contava-se Teodoro Ribeiro e Ernesto da Silva, ao tempo ainda alinhados com as posições de Azedo Gneco. Fizeram-se ouvir algumas críticas à alegada inoperância dos republicanos, como ficou claro na intervenção de Carlos Calista, que lamentou a sua falta de reacção perante o encerramento das escolas dos centros republicanos . Mas esse tom de crítica não foi geral. Ernesto da Silva, talvez antecipando futuras tomadas de posição que o levarão, anos mais tarde, a romper com Gneco e a aproximar-se de republicanos anarquistas intervencionistas, não deixou de elogiar Afonso Costa e Gomes Leal.
Durante a primeira sessão, Cândido Leal apresentou um moção, que foi aprovada, saudando as filarmónicas que não tomaram parte nos festejos. A noite, Gneco leu as conclusões da tese em discussão, «o ensino religioso nas escolas», propondo a supressão do ensino religioso nas escolas oficiais primárias, secundárias e profissionais; a extinção dos seminários e dos institutos de ensino religioso, das missões de catequese mantidas pelo Estado e da Faculdade de Teologia da Universidade de Coimbra; proibição dos padres e dos membros das congregações religiosas exercerem o professorado . Carlos Calisto apresentou um aditamento defendendo a supressão do ensino da História Sagrada no curso de História Universal dos liceus nacionais, que foi aprovado por unanimidade.
A segunda sessão foi presidida por Teodoro Ribeiro, que protestou contra «o espectáculo indecoroso que se exibiu ontem pelas ruas da capital com o chamado cortejo alegórico», considerando-o «um insulto para a cidade de Lisboa e para o povo português» . Nunes da Silva leu o parecer sobre a tese «O movimento Católico e a sua influência no século XIX em frente ao Socialismo», numa clara resposta à tese «O socialismo moderno e as suas consequências para a Religião) e para a sociedade», da autoridade de P. G. de Pascoal, lida na segunda sessão no Congresso Católico. A oitava última conclusão daquela tese apontava para uma «oposição a todas as instituições e a toda a acção do catolicismo» . A participação do jornalista e deputado republicano Francisco Gomes da Silva assumiu um duplo significado. Era, por um lado, uma figura grada do seu partido, e, por outro, um destacado membro da maçonaria. Recordemos que ele pertencia ao tempo à loja «Cavaleiros da Paz e Concórdia». onde alcançará em 1902 o grau 33 do Rito Escocês Antigo e Aceito, vindo ainda a ocupar cargos cimeiros no Grande Oriente Lusitano Unido . No seu discurso afirmou ser um dever participar no congresso porque «uma ausência poderia tomar as proporções de um divórcio entre o partido republicano e os proletários portugueses (…)», classificado ainda o problema social como a questão magna dos tempos modernos e, por esse facto, «os partidos avançados têm o dever de a estudar e de lhe procurar soluções. Se o partido republicano não tivesse essas preocupações, não teria a sua adesão» . Outra presença notada foi a do velho «internacional» Nobre França, convertido ao republicanismo, que se congratulou «por ver o partido operário português entre o caminho que orienta as sociedades modernas» . Na terceira sessão foram aprovadas todas as conclusões da tese intitulada «Da unidade religiosa, científica e política», das quais destacamos a abstenção do Estado em matéria religiosa; a extinção do orçamento dos cultos e dos subsídios às instituições religiosas e ao clero; abolição da embaixada junto da Santa Sé; supressão dos capelães militares e noutras instituições de beneficência e de assistência; registo civil obrigatório; liberdade de culto; secularização dos cemitérios; entrega aos municípios de todos os edifícios religiosos bem como das respectivas alfaias e outros bens móveis . Gomes da Silva fez uma segunda intervenção, desta vez na qualidade de maçon, salientando que a maçonaria não privilegiava qualquer religião, e que «o Deus dessa instituição é o trabalho e chama-se Supremo Arquitecto do Universo» . A quarta e última sessão teve como pontos culminantes as intervenções de Ernesto da Silva - que criticou a Rerum Novarum - e de Carlos Calisto, que explorou o contraste entre a pobreza de Jesus e a riqueza da Igreja. Gomes Leal apresentou uma proposta que consideramos a mais importante de todas porque não se quedava pelo enumerado repetitivo das eternas condenações e reivindicações, antes apontava para formas concretas e inovadoras de acção e de organização: «lº Que o partido socialista trate, cada vez mais, de criar, fomentar e doutrinar as agremiações e associações femininas, a fim de que as mulheres das classes populares possam escapar à acção e sugestão da Igreja e dos seus apóstolos. 2º Que o partido socialista não descure jamais, à custa dos mais ímprobos sacrifícios, a criação e manutenção de colégios laicos, nos quais seja obrigatório o ensino secular.
3º Que o partido socialista denegue, à semelhança dos antigos apóstolos do livre-pensamento, que em determinados períodos anuais vão pelas aldeias, burgos, províncias e terras mais sertanejas de Portugal, pregar o verbo dos tempos novos, e subtrair o aldeão, o trabalhador rural, o ganhão, o leitor inconsciente e fácil, à superstição religiosa e à tirania do reitor.
4º Finalmente, que o partido socialista trate de fazer elaborar e publicar, no mais curto prazo de tempo, um catecismo popular para ensinamento público (…)» .
Este documento, em especial o seu ponto 3º, aponta claramente uma nova direcção à propaganda anticlerical a missionação laica, como veremos mais adiante.
A denúncia das comemorações antonianas não se quedou pelas sessões do congresso - de repercussão ínfima -, pelas páginas virulentas dos jornais e pela romagem ritual ao túmulo de Sara de Matos. O momento culminante dos festejos, o cortejo marcado para dia 28 de Junho, foi pretexto para graves incidentes com amplos reflexos na opinião pública. A responsabilidade desses incidentes coube quase exclusivamente aos anarquistas.

3. Os Anarquistas e o Centenário Antoniano
Os acontecimentos encontram-se descritos em pormenor na imprensa coeva, variando o tom consoante a orientação do periódico. O Século descreve o ocorrido: «No Rossio, além da Calçada do Duque, atirados por mão desconhecida. caíram centenas de impressos em oitavo com o título Suplemento ao nº 61 da Propaganda - «Os Anarquistas ao Povo Trabalhador - Abaixo a Reacção», com um violento artigo defendendo os princípios anarquistas, ao mesmo tempo que se ouvia uma voz gritar abaixo os jesuítas» . A partir daí a confusão generalizou-se: «os populares correram a apanhar os papéis fazendo cair crianças. Pânico e correrias». «Caiu um pendão no principio da Rua do Ouro, a isso correspondeu um grito de uma mulher entre o povo» . A Vanguarda descreve com farta cópia de pormenores as correrias. apupos, bengaladas e intervenções policiais subsequentes.
O Século também é pródigo no colorido e no pitoresco das descrições: «o apertão era tão grande, todos tinham tal pressa de fugir, que ficaram senhoras despidas e calçadas, crianças espezinhadas, pulseiras, leques e sombrinhas perdidos, cabelos soltos, fatos rasgados. Os padres, levantando a batina, loucos de terror, seguidos pelos seminaristas, voaram pelas travessas, meteram-se no interior das lojas, onde despiam as vestes sacerdotais, os irmãos rasgavam as capas, brandiam as tochas, corriam, tropeçavam e caiam. Todos gritavam: Fujam! Fujam! e a confusão tomou aspecto de um burburinho incompreensível» . O lançamento dos panfletos iniciou a confusão, ampliada pelos apupos e provocações de grupos de manifestantes. A situação agravou-se na Rua do Ouro e na Praça do Comércio, com cargas da Guarda Municipal e a realização de centenas de prisões. A responsabilidade e premeditação dos incidentes suscitaram certa polémica. Para alguns sectores católicos, o grande responsável seria a maçonaria. Tal era a opinião de Fernando de Sonsa , que traçou um quadro apocalíptico dos incidentes: «vimos, então, um dia inteiro, os padres caçados como feras pelas ruas de Lisboa» . A Voz do Santo António também invectivava a maçonaria, que «por meio dos seus órgãos a Batalha, Vanguarda, Folha do Povo, Independente e quejandos, já há tempo vinha indispondo os espíritos contra todas as manifestações projectadas, combatendo-as» . Não excluímos a participação de elementos republicanos nos incidentes, mas o depoimento tanto de autores católicos como de republicanos apontam para uma responsabilização maior dos libertários. Veja-se o que escreve Luz de Almeida: «os trabalhos de reacção ao Centenário foram iniciados e levadas a efeito tendo como principais agentes, além de Pereira Batalha, os anarquistas Bartolomeu Constantino e Martins Vagueiro, o socialista Ernesto da Silva, o republicano Dr. Lomelino de Freitas, e como auxiliares os jornalistas Gomes da Silva, Alves Correia e Feio Terenas» . José Nunes, por seu turno, alude à «célebre procissão que se desfez ao ver voar umas centenas de manifestos arrojados pelas mãos dos conhecidos propagandistas Carlos Antunes, Bartolomeu Constantino, António Alcochetado, o Frytis, o velho Mendes, Luís de Matos, João de Oliveira (…)» . O próprio Nemo não deixa de apontar os anarquistas como co-responsáveis pelos acontecimentos, em especial Martins Vagueiro, um dos mais conhecidos libertários portugueses de então, implicado e detido por ocasião da célebre agressão a Pinheiro Chagas , atribuindo-lhe «frases de uma eloquência selvagem, explodindo como cartuchos e dinamite» . A Voz de Santo António reconhecia, também, a mão libertária na preparação dos incidentes, informando, com evidente exagero, que «duzentos anarquistas iam de propósito à procissão para provocar desordens, armados para o que desse e viesse» . O jornal legitimista A Nação publicava mesmo um artigo intitulado «O Anarquismo em acção», onde concluía que «o anarquismo e o socialismo são produtos do liberalismo» .
Foi o grupo anarquista ligado ao jornal Propaganda o responsável pelos distúrbios do dia 28 de Junho, ao distribuir o suplemento daquele periódico. Nos preparativos destacaram-se dois militantes - Francisco Borges do Espírito Santo, o editor, e Bartolomeu Constantino, uma das mais importantes figuras do socialismo libertário português e da sua vertente intervencionista. Foi este último o autor do manifesto. No entanto, não se pode dizer que as autoridades estivessem desprevenidas. Pelo contrário, por ocasião do cortejo nocturno na Avenida, a polícia realizou diversas rusgas prendendo mendigos, vadios e marginais. A imprensa alude a 205 prisões, das quais apenas urna foi motivada por razões políticas ao ser detido um homem que soltou vivas à anarquia .

4. As justificações
Os detidos durante os incidentes foram conduzidos ao Governo Civil e interrogados. Alguns jornais publicaram excertos das suas declarações que são de grande interesse para avaliarmos motivações, justificações graus de consciência política e ideológica ou simplesmente tentativas de iludir as autoridades com desculpas inverosímeis. Alguns dos anarquistas presos eram militantes destacados do ideal acrata - Bartolomeu Constantino, Jaime Tavares, Albino de Morais, Martins Vagueiro e o futuro carbonário João Borges. Vejamos sumariamente as declarações publicadas em O Século:
João António Alves Borges. 17 anos, relojoeiro: Porque foi que você não quis tirar o chapéu?
- Porque estava indignado de ver ali desfilar diante de mim uma fantochada que representa uma coisa que não existe.
- Você é ateu?
- Sou e tenho muita honra nisso!
- Qual é a sua política?
- Sou republicano-socialista».
Tirso Augusto dos Santos, cerca de 25 anos, serralheiro
«Declarou ter atirado os manifestos anarquistas, não se arrependendo do que praticou e prometendo continuar a sua propaganda». «Abaixo os ladrões e todas as autoridades; porque a sociedade não sustenta senão a escola do crime; sou anarquista e hei-de continuar a sê-lo, fazendo sempre a propaganda (…). A policia me agrediu primeiro e eu tendo uma bengala comecei a dar porque não sou de papelão».
Vasco Augusto Soares, carpinteiro:
- Nascia na terra que é de todos. Onde fui baptizado não sei, porque não penso nessas coisas».
A Batalha também publicou outros excertos dos interrogatórios:
João Alves Borges - «Declara ser verdade o ter dito que os padres para nada servem e que os portugueses deviam acabar com os jesuítas e com a palhaçada da procissão».
José Luís Bernardino - «Aceita as ideias anarquistas conquanto não esteja filiado no partido. Também distribuiu suplementos da Propaganda».
Manuel Nepomuceno - «Distribuiu o suplemento do jornal Propaganda, para obsequiar o seu amigo José Joaquim de Oliveira. Não é anarquista e parece-lhe que os indivíduos presos com ele também o não são. Declarou que o box que lhe foi apreendido pertencia a um seu amigo que lho meteu no bolso».
Francisco Mendes - «Não é anarquista mas como é dos oprimidos quer a igualdade, mas repele a ideia da destruição. Distribuiu alguns protestos imaginando não haver perigo algum nisso e se o fez foi a pedido de um individuo».
José Maria - «Não proferiu palavras obscenas contra a religião e só respondeu a um capitão que estava à paisana mas sem o ofender. É anarquista».
Fernando dos Reis - «Sou exposto! A minha naturalidade é a Terra. Confessa ter distribuído os prospectos anarquistas. Não faz propaganda das suas ideias e se as professa é por ver a má constituição da sociedade actual».
Bartolomeu Constantino - «É anarquista e foi o autor do manifesto. Declara que quando foi preso à porta do calabouço do Governo Civil estava conversando com o redactor da Propaganda sobre assuntos do jornal». Sobre esta prisão de Bartolomeu Constantino, O Século dá uma explicação diferente - ao visitar alguns presos detidos no Governo Civil, aproveitou a ocasião «para fazer propaganda das suas ideias, começando a discursar à porta daquele edifício, juntando-se grande número de populares para o ouvir» . Foi então detido juntamente com José Domingues Marques.
A caminho do Limoeiro, os presos manifestaram-se ruidosamente no carro celular . Nova leva de detidos foi interrogada no dia 5 de Julho, sendo todos confrontados com as mesmas acusações: distribuição do suplemento da Propaganda, soltar «vivas» à anarquia e «morras» aos jesuítas, agressão às autoridades. Vejamos as respostas dadas por este segundo grupo : 67
Mateus Rodrigues - «O ter dado vivas é falso, agora dos suplementos é verdade e o ter agredido a autoridade também, por os guardas me terem agredido, e se eu tivesse um punhal envenenado a coisa seria doutra maneira, mas para a outra vez isso terá que suceder em vista de nos estarem a incitar pelo facto».
Francisco Augusto Soares - «Sou anarquista-comunista porque entendo que a anarquia é o ideal que há-de por termo a todas as desigualdades sociais (…). Se espanquei a autoridade foi porque fui primeiro espancado».
Augusto da Costa Rito - «Atribuo a minha prisão a ser conhecido como anarquista, pois esse é o ideal que defendo».
Álvaro Nogueira - «Trazia, é certo, manifestos nas algibeiras mas tencionava envia-los para o estrangeiro, conforme me pediram alguns camaradas».
No dia 6 de Julho foram remetidos a tribunal Mateus Rodrigues Augusto da Costa, Álvaro Nogueira, Luís António Nogueira, António da Cruz, Tirso dos Santos e Francisco Augusto Soares, que pagou uma fiança de 200$000 réis sendo fiador o Dr. Eduardo Maia. Dispomos ainda da descrição do julgamento de Bartolomeu Constantino, defendido pelo Dr. Lomelino Freitas e de algumas notícias esparsas surgidas na imprensa que mostram que os detidos não desanimaram mesmo na prisão. Chegaram até a efectuar duas conferências em pleno calabouço, destinadas aos presos de delito comum, à luz de velas de estearina que compraram para o efeito. As conferências intitularam-se «O sentido em que somos anarquistas» e «O que são os jesuítas » .
As declarações dos anarquistas presos não são conclusivas. Como se vê, o anticlericalismo é apenas levemente aflorado, invocando antes argumentos de carácter social geral.

Conclusão
A contestação ao Centenário Antoniano de 1895 teve duas consequências antagónicas talvez inesperadas. Por um lado, a ideia lançada por Gomes Leal no congresso anticlerical, a missionação laica, apontou uma nova direcção à propaganda laica - a passagem de um nível intelectual. elitista, relativamente fechado, para outro onde se procurava influenciar amplas camadas da população. Saiu-se das salas dos clubes e dos centros para os bairros, as vilas e aldeias. Alguns meses depois, por iniciativa de Azedo Gneco e do Partido Socialista, surgiam os círios civis, que assimilam essa transição do círculo estreito da elite burguesa urbana, liberal e republicana, para o meio popular. Os círios civis, estruturas marcadamente populares, terão um papel fundamental na luta anticlerical até 1901, perdendo significado a partir de então.
Por outro lado, as desordens registadas durante o cortejo antoniano vieram causar alarme. Se bem que em Portugal a propaganda pelo facto fosse quase inexistente e, se compararmos com o que sucedeu noutros países europeus, o terrorismo anarquista entre nós foi quase inexistente, a lei de 13 de Fevereiro de 1896 veio reprimir um perigo que era, então, meramente hipotético. Foi uma lei preventiva. É que, em nosso entender, os incidentes ocorridos nos finais de Junho de 1895 vieram chamar a atenção das autoridades e da opinião pública para a actividade crescente dos grupos libertários, desenvolvendo a imprensa conservadora uma intensa campanha contra o «perigo anarquista». Serviam de pretexto - juntamente com outros episódios mais ou menos ridículos, como o atentado contra o rei e a bomba dirigida contra o Dr. Joyce - para justificar a célebre lei de João Franco.

Publicado em: Lusitânia Sacra, Tomo VIII-IX, 1996-7, pp. 361-383.

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