A Ideia Federal no Republicanismo Português (1910-1926)

Ernesto Castro Leal

“Quem diz federação, diz garantia, legitimidade, igualdade. A reconstituição dos municípios tornar-se-á o início do regime federativo. O distrito é uma criação artificial. A província representa a tradição, sob o ponto de vista do território e da população”.
Sebastião de Magalhães Lima .

1. Consideração inicial

O presente artigo visa abordar momentos históricos relevantes da proposta federalista e apresentar várias conceptualizações de República que o federalismo político concebeu em Portugal, entre 5 de Outubro de 1910 e 28 de Maio de 1926, período durante o qual se afirmou a mundividência política e cultural republicana na Nação e no Estado . Apesar de ocorrer uma forte audiência do municipalismo, regionalismo e federalismo junto dos republicanos portugueses, por via da influência ideológica de José Félix Henriques Nogueira (Estudos sobre a reforma em Portugal, 1851, e O Município no século XIX, 1856), Pierre-Joseph Proudhon (Do Princípio Federativo, 1863), Francisco Pi y Margall (As Nacionalidades, 1876) ou Benoit Malon (Socialismo Integral, 1890-1891), ideais políticos que o manifesto-programa de 11 de Janeiro de 1891 do Partido Republicano Português espelhava, sob a evocação político-institucional dominante do confederalismo democrático suíço, a verdade é que a Constituição de 1911 consagrou um modelo de República Unitária parlamentar.
A crescente crítica na opinião pública, incluindo importantes áreas das elites republicanas, sobre práticas de centralismo administrativo e clientelismo político, desenvolvidas em várias circunstâncias pelo novo regime republicano, permitiu o ressurgimento cíclico desses ideais. O problema então colocado, fundamentalmente por notabilidades republicanas radicais, republicanas conservadoras e socialistas, era o da urgência de uma federalização continental a partir da divisão geográfica dominante em seis ou oito províncias, com a federalização insular da Madeira e dos Açores, mas não se esquecia totalmente a federalização colonial . Reintroduziu-se assim no debate tópicos como república federal ou confederal, autonomia, presidencialismo, patriotismo, regionalismo, provincialismo, municipalismo, chefia colegial do Estado, mandato imperativo ou sufrágio universal directo, exprimindo a epígrafe deste artigo a mundividência federalista comum a vários sectores do pensamento e da acção política.
Os publicistas políticos José Pinto de Macedo, Augusto Alves da Veiga, João Bonança, António Machado Santos, Henrique Trindade Coelho ou Sebastião de Magalhães Lima, o II Congresso Nacional Municipalista de 1922 e vários Congressos Provinciais de 1923, os grupos políticos Integridade Republicana, Partido Republicano Radical Português, Federação Nacional Republicana, Partido Republicano Radical, Partido Socialista Português ou Partido Comunista Português foram áreas de opinião pública por onde alguns desses tópicos circularam e se materializaram em propostas federalistas, que ganharam um pouco de visibilidade - alimentando o progressivo “canto do cisne” ideológico do federalismo - na sociedade portuguesa, muito marcada pela crise de autoridade do Estado, a perda de credibilidade política das elites governativas, a quebra do consenso social, o choque de legitimidades político-ideológicas e a afirmação crescente do nacionalismo autoritário antiliberal.
O método organizativo federal ou confederal para a distribuição do poder (modelo político-administrativo) é a descentralização, elemento que se manterá, como veremos, nas várias propostas de República formuladas como resposta às práticas de centralismo unitarista republicano, apontando a necessidade de desconcentrar poderes do centro para a periferia e de afirmar um novo tipo de poder regional sufragado pelos cidadãos, unindo nessa reivindicação federalistas descentralizadores e unitaristas descentralizadores. Não se tratava de unir o que estava disperso, através de um modelo de federalismo centralizador (“federalismo por agregação”), evocado por Publius, pseudónimo de Hamilton, Madison e Jay (O Federalista, 1787-1788), pais fundadores dos EUA, mas sim de fragmentar regionalmente um poder que se considerava demasiado unificado e burocratizado, daí as soluções de modelos de federalismo descentralizador (“federalismo por desagregação”), inspirados em Proudhon e Pi y Margall. Nas propostas federalistas adiante apresentadas surpreende-se, quase sempre, uma visão do mundo de convergência entre o ecumenismo (universalismo do século XVIII) e o nacionalismo (romantismo do século XIX).

2. O Manifesto-Programa Federalista de 1891 do Partido Republicano Português

O discurso federalista, que incorporou o nacionalismo nos seus referentes ideológicos, dada a forte componente historicista do nosso ideário republicano , foi uma das matrizes da mentalidade política dos intelectuais republicanos e do Partido Republicano Português, desde a sua formação entre 1876 e 1883 até 1910, apesar do debate entre unitaristas e federalistas, onde se inseriu o iberismo e o anti-iberismo . Este debate revelou as duas principais divisões, estabelecidas na ciência política, quanto às formas de Estado: o Estado simples ou unitário e o Estado composto ou complexo. Neste último, insere-se a federação, geralmente republicana, a qual “repousa na sobreposição”, porque o novo poder do Estado federal situa-se acima dos poderes dos Estados federados, que podem ser muitos ou poucos , surgindo o modelo federal republicano brasileiro, consagrado na Constituição de 1891, como exemplo inspirador de republicanos portugueses quanto ao sistema de governo presidencial imperfeito (os Ministros dos Estados referendam os actos do Presidente da República), eleição directa do Presidente da República, bicameralismo (Câmara dos Deputados e Senado com representação paritária dos Estados federados), elevação das anteriores províncias a Estados federados, autonomia dos municípios, Constituição da União e Constituições dos Estados ou a fiscalização judicial difusa da constitucionalidade das leis .
O federalismo, enquanto modelo político a consagrar após a revolução republicana, diluir-se-ia progressivamente na transição para o século XX, em particular desde o “ultimatum” inglês de 11 de Janeiro de 1890, e praticamente desapareceu do debate público após a Constituição de 1911 consagrar uma “República Unitária” - “A Nação Portuguesa, organizada em Estado Unitário, adopta como forma de governo a República” (artigo 1º) - e um regime descentralizador para as instituições locais administrativas (artigo 66º) e para a administração das províncias ultramarinas (artigo 67º). Revia-se, quanto à natureza do Estado e à organização da Nação, o ideário geral federalista constante do manifesto-programa do Partido Republicano Português, assinado simbolicamente com a data de 11 de Janeiro de 1891 (um ano após o “ultimatum”), que ainda estava formalmente em vigor em 1910 e fora elaborado fundamentalmente por Teófilo Braga , com a colaboração de Jacinto Nunes, Manuel de Arriaga, Francisco Homem Cristo, José de Azevedo e Silva e Bernardino Pinheiro, todos membros da comissão executiva do partido eleita no Congresso de Lisboa, realizado na sede da Associação Escolar Fernandes Tomás em 4, 5 e 6 de Janeiro de 1891 .
Nesse programa de forte sensibilidade federalista, quanto à organização dos poderes do Estado, enuncia-se, para o poder legislativo, uma dupla realidade política: a Federação de Municípios, legislando em Assembleias Provinciais sobre todos os actos concernentes à segurança, economia e instrução provincial, dependendo nas relações mútuas da homologação da Assembleia Nacional; e a Federação de Províncias, legislando numa Assembleia Nacional, sancionava sob o ponto de vista do interesse geral as determinações das Assembleias Provinciais e velava pela autonomia e integridade da Nação. Para o poder executivo, era proposta uma divisão em três grandes Ministérios: segurança pública, educação pública e economia pública. Para o poder judicial, estabelece-se o juízo de conciliação, preparação, arbitragem e revisão, o juízo cível e o juízo criminal, policial e administrativo.
No referente à fixação das garantias individuais, afirma-se, entre as liberdades essenciais (instrumento das garantias políticas e actos civis), a liberdade de consciência e a igualdade civil e política para todos os cultos, a abolição do juramento nos actos civis e políticos, o registo civil obrigatório, a liberdade de imprensa e de ensino, o ensino elementar obrigatório, secular e gratuito, a secularização dos cemitérios e a criação de um Panteão nacional para as honras cívicas. Quanto às liberdades políticas (ou de garantia), consagra-se o sufrágio universal, a representação das minorias, a autonomia municipal e a descentralização das províncias ultramarinas, a liberdade de associação, reunião e representação, o poder legislativo de eleição directa, ou o poder executivo de delegação temporária do legislativo, atribuindo à acção presidencial a competência das relações gerais do Estado. Por fim, nas liberdades civis (ou objecto da acção individual) constam, entre outras, a extinção das últimas formas senhoriais da propriedade, o cooperativismo, a protecção pautal à indústria nacional, a regulamentação do inquilinato ou a mudança no sistema penitenciário com a criação de colónias penais agrícolas.
José Jacinto Nunes, republicano de larga visão descentralista , foi incumbido em Julho de 1891 pelo directório do Partido Republicano Português, dentro da perspectiva de aprofundamento temático do manifesto-programa, de elaborar um projecto de código administrativo republicano, que concluiu em 10 de Agosto desse ano e foi publicado em 1894 como trabalho individual, visto o directório não ter chegado a discuti-lo . Seguindo o método adoptado no código administrativo em vigor, repudiava o conteúdo da organização administrativa vigente (“perfeitamente cesariana”, “regime centralista”, “abusos dos seus tutores”) e propunha um regresso “à tradição nacional”, confiando exclusivamente aos mandatários directos das localidades a administração dos seus negócios especiais, e subordinando-os à acção repressiva dos tribunais comuns . Em sintonia com o programa republicano de Janeiro de 1891, que incorporava a organização provincial na estruturação política, a divisão do território proposta nesse projecto far-se-ia em províncias, municípios e freguesias, respectivamente administradas pela Juntas Provinciais, Câmaras Municipais e Juntas de Paróquia.
Esta mentalidade política provincialista tinha grande audiência no republicanismo de então , devedora também do provincialismo descentralizador de Proudhon , porém a República optará pela distritalização administrativa - seguindo a opção monárquica desde 1835/1836 - mais adequada ao consagrado unitarismo, apesar de, em Junho de 1914, o Senado ter aprovado por maioria a divisão do continente em seis províncias, mas a Câmara dos Deputados não a ratificou: Douro e Minho (capital, Porto; distritos do Porto, Aveiro, Viana do Castelo e Braga), Trás-os-Montes (Vila Real; distritos de Vila Real e Bragança), Beira (Coimbra; distritos de Coimbra, Viseu, Guarda e Castelo Branco), Estremadura (Lisboa; distritos de Lisboa, Leiria e Santarém), Alentejo (Évora; distritos de Évora, Portalegre e Beja) e Algarve (capital e distrito de Faro) . Devedor dessa nova circunstância, seria o projecto de Código Administrativo de Agosto de 1911, nunca oficialmente aprovado na íntegra, elaborado por uma comissão nomeada por decreto de 25 de Outubro de 1910 e presidida por José Jacinto Nunes, com António Caetano Macieira, José Maria de Sousa Andrade e Francisco António de Almeida, vogais . Neste projecto, que no texto endereçado aos membros da Assembleia Nacional Constituinte, o ministro do Interior, António José Almeida, constatou ter “um largo espírito de liberdade” , a divisão administrativa do território compunha-se de distritos, concelhos e paróquias civis, respectivamente administradas pela Juntas Gerais de Distrito, Câmaras Municipais e Juntas de Paróquia; os concelhos de Lisboa e Porto seriam subdivididos em bairros e estes em paróquias civis.

3. O Federalismo colonial de José de Macedo

Destacado republicano socialista de matriz federalista e maçon, muito influenciado por Pi y Margall, Benoit Malon e Sebastião de Magalhães Lima, José Pinto de Macedo concluiu o Curso Superior de Comércio em 1897 e, entre 1902 e 1909, esteve em Angola a dirigir o jornal Defesa de Angola e a aprofundar o estudo dessa Província para fundamentar e propalar a urgente autonomia colonial, seguindo, em adaptação às condições específicas, o modelo colonial inglês de self-government, que via realizado com vantagens para as populações no Canadá, na Austrália ou na África do Sul. O seu livro Autonomia de Angola , escrito entre 1909 e 1910, já regressado a Lisboa, sistematizava uma posição descentralista administrativa e financeira a caminho do autonomismo político, radicada na corrente descentralista colonial que “recebeu a sua condensação doutrinária” na obra Estudo sobre a administração civil das nossas possessões africanas, do major do Estado Maior Eduardo da Costa .
José de Macedo glorificava Eduardo da Costa, não esquecendo outros descentralistas como Miguel de Bulhões, António Pereira de Matos, Albano de Magalhães, Rui Enes Ulrich, António Enes, Joaquim Mouzinho de Albuquerque, Alfredo Freire de Andrade ou Aires de Ornelas, destacando, no campo partidário, as posições do Partido Socialista Português, visto a “república socialista ser uma ampla confederação universal, onde cada agregado social será integrado, logicamente, no conjunto geral” e o socialismo revelar politicamente a “autêntica expressão da autonomia regional e local” . Defensor da urgente descentralização administrativa e financeira, condicionava a progressiva autonomia política, que era o “último termo da descentralização” , à evolução da educação política das populações. Perante a organização administrativa de Angola, em 1910, consubstanciada numa Província unitária com seis distritos (Congo, Luanda, Lunda, Benguela, Moçâmedes e Huíla), propõe uma grande alteração: criar a Confederação de Angola, reunindo três grandes Estados autónomos - Luanda (distritos do Congo, Luanda e Lunda), Benguela (distrito de Benguela) e Moçâmedes (distritos de Moçâmedes e Huíla) .
Durante o período de transição para a plena autonomia, o Governo de cada Estado seria exercido por um Ministério saído da sua população civilizada e presidido por um residente, que representaria a metrópole, constituindo-se na cidade de Luanda, por exemplo, o Governo Geral da Confederação, onde se fixaria o representante da metrópole, assistido por um Ministério que tratava de negócios e interesses comuns aos Estados. Como a autonomia devia ser um processo interno de Angola, dos seus elementos “activos e intelectivos”, José de Macedo sugeria a realização de um Congresso Geral da Província com delegados dos vários Conselhos Provinciais, para debater e nomear uma comissão central que redigisse a Constituição Geral da Confederação .
O livro foi concluído logo após a revolução de 5 de Outubro de 1910 e, em registo de história imediata, após recordar a máxima de Benoit Malon - “a República é a fórmula política da dignidade humana” -, averbou este aviso político: “Tenho visto, com desagrado e desgosto, que o ministério das colónias [o primeiro ministro das Colónias Celestino de Almeida entrou em funções em 3 de Setembro de 1911] tem andado em constantes e indecisivas tentativas, sempre sem um plano definido. Nomeando comissão em Lisboa, para coisas do ultramar é não ver com nitidez o problema […]. Quererão os dominadores da metrópole impedir que as colónias progridam?! Que amargas desilusões lhes estarão destinadas no futuro se persistirem, em as considerar, ainda, populações conquistadas!” .
No contexto dos debates parlamentares sobre a revisão constitucional de 1919, o deputado Domingos da Cruz, também sugestionado pelas “modernas tendências descentralizadoras” em relação à administração colonial, apresentou na Câmara dos Deputados um projecto de revisão, onde ressurgiu o federalismo colonial. Propunha a adopção do sistema federativo republicano para a Nação portuguesa (artigo 1º), sendo a Federação constituída pelo Estado Federal do Continente e Ilhas e pelos Estados Confederados do Ultramar - Estado Federal de Cabo Verde, Guiné e São Tomé e Príncipe, Estado Federal de Angola, Estado Federal de Moçambique e Estado Federal da Índia, Macau e Timor (artigo 2º) .

4. Posições federalistas na Assembleia Nacional Constituinte

A evocação do património ideológico federalista fez-se sentir, em 1911, durante os debates da Assembleia Nacional Constituinte, através dos projectos constitucionais dos deputados António Machado Santos e Manuel Goulart de Medeiros ou do Grémio Montanha e pela voz dos deputados Sebastião Baracho, Djalme de Azevedo ou Carlos Maia Pinto, umas vezes defendendo a divisão provincial do território, outras vezes a divisão distrital, propondo diversas formas de regime político e de sistema de governo. Por sua vez, o deputado António Maria da Silva, partilhando desse utopismo, considerava que, antes de existir um sólido municipalismo, alicerce da República federal, devia adoptar-se a República unitária, sendo esta justificação comum a outros, como Manuel de Arriaga, e o deputado republicano socialista Fernão Botto Machado afirmará que com “pesar deixo de propor que Portugal siga essa corrente [federalismo]. Autonomia e federalismo são coisas bem diversas; mas considero aquela um grande passo para a realização deste”, advogando um regime político “republicano e representativo, democrático e descentralizador” (artigo 2º) .
As bases constitucionais do deputado António Machado Santos , conhecidas em 28 de Maio de 1911, não formalizavam concretamente o regime político, o que habitualmente ocorria nos primeiros artigos, mas a conceptualização republicana explicitada era federalista. O território continental dividia-se em sete províncias (Trás-os-Montes, Minho, Douro, Beiras, Estremadura, Alentejo e Algarve), que agregavam municípios (artigo 2º). O poder legislativo exercia-se numa Assembleia Nacional, bicameral, constituída pela 1ª secção (representantes dos municípios e das províncias coloniais) e pela 2ª secção (representantes das classes, institutos científicos e estabelecimentos do ensino superior), não havendo uma câmara política de representação partidária; na mesa da Assembleia Nacional, havia um Presidente, que era o Chefe de Estado, um Vice-Presidente e dois Secretários (artigos 10º e 11º). O poder executivo recaía no Conselho do Governo, composto pelo Presidente da Assembleia Nacional e por oito Secretários de Estado de sua livre escolha, o que tipificava um sistema de governo presidencialista.
A posição política de Machado Santos modificou-se em 1916 no seu novo projecto constitucional , visto optar pelo Estado Unitário (artigo 1º). Continuava a defender o presidencialismo, através da autonomia de um Poder Presidencial (poder executivo), assistido pelo Conselho de Estado com a cooperação dos Ministros, mas o Presidente da República, que nomeava e demitia os Ministros, passava agora a ser eleito por sufrágio universal directo (artigos 6º a 9º e 17º). O poder legislativo (Congresso da República) era bicameral, com uma Câmara dos Deputados de cinquenta deputados eleitos em círculo único e um Senado corporativo de noventa e cinco senadores (artigo 27º). Nova viragem política de Machado Santos ocorreu aquando da criação da Federação Nacional Republicana em 1919; adiante se verá que o capítulo I da sua lei orgânica apresentava o objectivo político-institucional de um Estado Confederado Português.
Nas bases constitucionais apresentadas pelo deputado Manuel Goulart de Medeiros precisava-se, logo de início, a opção pela República Federal Democrática, com uma divisão territorial do continente em seis províncias - Minho, Trás-os-Montes, Beira, Estremadura, Alentejo e Algarve (base 1ª, § 1º). As províncias juntavam distritos, os distritos reuniam concelhos e os concelhos agregavam freguesias ou paróquias (base 2ª). No poder legislativo, o Congresso Nacional, bicameral, dividia-se em Câmara dos Deputados (deputados da nação) e Senado (deputados dos distritos), sendo o sufrágio universal (bases 8ª e 9ª). O Presidente do Congresso, eleito pelas duas câmaras, será o Presidente da República (base 10ª) e o poder executivo central pertenceria ao Ministério, com um Presidente, eleito pelo Congresso Nacional, que escolhia seis ministros (base 28ª).
O projecto de Constituição do Grémio Montanha , loja maçónica do Grande Oriente Lusitano Unido, datado de 23 de Junho de 1911, consagrava a forma de Governo republicana democrática e federativa (artigo 2º) e a federalização de distritos autónomos (continente e ilhas) e províncias autónomas (artigo 3º), sendo cada distrito autónomo formado pela federação dos concelhos nele compreendidos (artigo 4º). O poder legislativo residia numa Assembleia Nacional, unicameral, eleita por sufrágio universal directo (provavelmente uma câmara política de representação partidária) e os deputados representavam toda a nação e não só os círculos que os elegeram (artigos 6º e 22º), o que mostra a recusa do mandato imperativo. O poder executivo competia a um Directório de cinco membros, sendo um o Chanceler e os outros responsáveis pela defesa nacional, relações diplomáticas, relações com as colónias e administração geral; oito Secretários de Estado executavam as leis decretadas pelo Directório (artigos 31º a 33º e 37º).
A argumentação unitarista, que vingou entre os deputados constituintes, insistiu na existência antiga de uma pátria estável e una e recordou que não se podia fazer a divisão federal com base no distrito, visto ser uma pura divisão administrativa, nem com base na província, pois não possuía tradição política e era uma simples expressão territorial, sem unidade de consciência colectiva . Apesar de tudo, a argumentação federalista, defendendo a compatibilidade entre a unidade nacional e a diversidade regional, propunha a criação de uma Confederação de Estados federados ou de uma Federação com a dupla legitimidade do Estado federal e dos Estados federados, continuou a emergir ao longo da Primeira República. A evocação do programa republicano de 1891 fez-se junto de federalistas descentralizadores, mas também ocorreu em unitaristas descentralizadores, sendo caso paradigmático o de José Domingues dos Santos, já nos finais do regime, durante o Congresso fundador do Partido Republicano da Esquerda Democrática em Abril de 1926, onde apresentou uma tese sobre o problema político que inscrevia o seguinte: “Proponho que o Partido Republicano da Esquerda Democrática tome por base de doutrinarismo político o velho programa do Partido Republicano, publicado em 11 de Janeiro de 1891. […] sobre esse velho programa impõe-se-nos a obrigação de o renovar e readaptar em harmonia com os ensinamentos do Mundo moderno” .

5. A República Federal de Augusto Alves da Veiga

Acompanhando de longe, no seu posto diplomático de Bruxelas, o debate na Assembleia Nacional Constituinte de 1911 sobre a natureza do regime, o republicano histórico e antigo dirigente civil revolucionário do 31 de Janeiro de 1891, Augusto Manuel Alves da Veiga, publicou o livro Política Nova, onde se fazia a defesa intransigente do ideário federal, mas o contexto político constituinte era já de “requiem pelo federalismo” . Alves da Veiga inseria-se na área intelectual que criticava fortemente a tradição centralista e unitarista do poder em Portugal e advogava uma profunda descentralização política e administrativa para “criar uma pátria nova” e “formar um povo moderno”, adoptando-se o regime federativo, segundo o modelo suíço, com as necessárias modificações decorrentes da realidade portuguesa .
A resposta constitucional proposta devia assim corporizar uma República Federal, respeitando a autonomia local dos municípios e a livre iniciativa individual para um verdadeiro self-government, a qual confederava oito províncias, não discriminadas, mas provavelmente correspondentes a uma divisão só do continente (Minho, Trás-os-Montes, Douro, Beira Alta, Beira Baixa, Estremadura, Alentejo e Algarve), com o estatuto de Estados provinciais - uma união de municípios ou concelhos que, por sua vez, eram uma união de comunas ou paróquias -, Estados “autónomos em tudo quanto respeitar à sua vida particular, e ligados pelo laço da federação, para a mútua e necessária defesa dos interesses que solidariamente as possam afectar” . Cada um destes Estados teria o seu Governo próprio, formando uma “pequena república”, com as respectivas funções legislativa, executiva e judicial.
Apesar de referências paradigmáticas que encontrava nas tradições constitucionais republicanas dos Estados Unidos da América, da Suíça e do Brasil, ajustava-as à vida nacional, apresentando um modelo onde encontramos, por exemplo, o sistema eleitoral plurinominal e proporcional, com a recusa do mandato imperativo, por ser uma “forma violenta pouco prática”, o bicameralismo da Assembleia Nacional (Câmara Popular ou dos Deputados, eleita por sufrágio universal directo, e Câmara dos Estados Provinciais, composta em igualdade por representantes da soberania desses Estados), a eleição pela Assembleia Nacional do Presidente e do Vice-Presidente da República (mandato de quatro anos, sem reeleição no quadriénio seguinte), em virtude do nosso corpo eleitoral ser pouco alfabetizado (“razão bem penível”), não obstante o seu ideal ser a eleição directa (modelo da república presidencialista brasileira) e a fiscalização de todos os serviços do Estado, dando mais competências ao Conselho Superior da Administração Financeira do Estado, que substituiu o antigo Tribunal de Contas, “cuja acção fiscal era improfícua e de origem essencialmente burocrática”.
Quanto ao poder executivo, Alves da Veiga sugeria um Ministério ou Conselho Executivo Nacional, composto por um Presidente, nomeado pelo Presidente da República e nove ministros para as áreas da instrução pública e belas-artes, defesa nacional, relações exteriores, justiça, agricultura, comércio e indústria, administração interior, finanças e bens nacionais, marinha e colónias e obras públicas. O poder executivo perderia o carácter tutelar comum, restringindo a acção coordenadora aos interesses de carácter geral para respeitar “a autonomia das localidades, que é base da política federativa, […] onde reside a força renovadora e progressiva por excelência das sociedades modernas” .
No argumentário unitarista, coloca-se a circunstância da homogeneidade portuguesa desde meados da primeira dinastia, em particular a sua unidade política, o que é reconhecido por Alves da Veiga, quando a confronta com a Espanha, Suíça, Áustria ou Alemanha, exemplos de fragmentação do território ou de diversidades etno-linguísticas. Contudo, insistia, sem aprofundar, que temos “unidades administrativas [província, município ou concelho e comunas ou paróquias] bem caracterizadas, com larga base nas tradições da história nacional e no carácter e interesses das populações”, o que justificava o regime federativo com oito estados provinciais de fisionomia distinta face ao regime da propriedade, sistemas de cultura agrícola, produções da terra, indústrias, clima, configuração geográfica e até nos sentimentos morais .

6. Congressos Nacionais Municipalistas de 1909 e de 1922

O I Congresso Nacional Municipalista realizou-se no salão nobre da Câmara Municipal de Lisboa, entre os dias 16 e 21 de Abril de 1909, sob a direcção de uma comissão executiva, onde se destacou o vereador Filipe da Mata. O Congresso foi sugerido pelo vereador Agostinho Fortes, na sessão camarária de 7 de Janeiro de 1909, numa afirmação pública da vereação republicana lisboeta, eleita no ano anterior, conseguindo juntar 242 delegados de 161 Câmaras Municipais . Anselmo Braamcamp Freire, presidente da Câmara Municipal de Lisboa, na alocução inicial, recordou o erro de centralizar toda a vida municipal no Ministério de Reino, defendeu o ressurgimento da autonomia municipal e desejou que se pusesse de parte durante o Congresso toda e qualquer “preocupação política” (leia-se, forma de regime político) e assim se respeitasse as “convicções” de todos.
Entre as mais importantes teses, estavam as de José Soares da Cunha e Costa, “Autonomia municipal e consequente descentralização administrativa. Referendum popular” e “Municipalização dos serviços públicos”, onde se escrevia que a “municipalização e o cooperativismo são os grandes elementos para a edificação da cidade futura” , e a proposta de federalização orgânica de Agostinho Fortes, “Federação de municípios e estes como federações de paróquias. A Pátria como síntese da federação nacional”, atribuindo-se ao Estado apenas o exercício de “funções de regularizador e concatenedor da obra comum municipal, além daquelas que caibam como integração suprema da Pátria” . A concluir, na sessão de encerramento, Anselmo Braamcamp Freire reafirmou como “passo inicial, para o rejuvenecimento da Nação”, a necessidade da autonomia municipal, partilhada por todos os congressistas. Na representação com os votos finais do Congresso dirigida ao Parlamento, que foi recebida pelo presidente da Câmara dos Deputados, José Joaquim Mendes Leal, com o “maior prazer” e desejo que “fossem introduzidos na legislação”, deve destacar-se as seguintes: necessidade de uma reforma administrativa, largamente descentralizadora; recusa de aprovação governamental sobre todas as deliberações de competência camarária; possibilidade das Câmaras se dirigirem directamente ao Governo; rejeição do referendum popular para ratificar as deliberações municipais sobre empréstimos ou agravamento de impostos; aprovação do princípio orgânico federativo e da municipalização dos serviços públicos; recomendação do princípio de restituição do ensino primário às Câmaras.
Após os Congressos Nacionais Municipalistas de 1909 (Lisboa) e de 1910 (Porto) – este não teve a importância que adquiriu o anterior –, realizou-se em Évora o I Congresso Municipalista Alentejano (28 a 30 de Outubro de 1915) que mobilizou destacados republicanos descentralistas (José Jacinto Nunes e Ana de Castro Osório) e parte da elite política camarária alentejana de 38 Câmaras, faltando as Câmaras Municipais de Odemira, Ourique, Marvão e Niza . Carlos Monteiro Serra, vereador da Câmara Municipal de Évora, apresentou a tese sobre “Federação dos municípios alentejanos”, recolhendo os votos finais do Congresso a decisão unânime de constituir essa Federação com todos os municípios federados e representados num Parlamento Provincial Alentejano, através de vereadores eleitos directamente pelas respectivas Câmaras Municipais (voto 1º). Outros votos reclamavam a modernização do código administrativo (voto 2º), o desenvolvimento dos conhecimentos agrícolas (voto 4º), a municipalização dos cursos de água necessários à irrigação dos campos (voto 6º) e dos cereais, azeites e cortiças, quando os municípios estiverem federados (voto 11º), ou a cobrança directa dos impostos municipais pelas Câmaras (voto 10º). Apesar de não terem sido realizados, os votos manifestaram uma forte vontade municipalista.
A mobilização da consciência republicana, firmada no “evangelho municipalista” de Henriques Nogueira , teve novo momento alto durante as sessões de preparação e nas sessões finais do III Congresso Nacional Municipalista, realizado também no salão nobre da Câmara Municipal de Lisboa, nos dias 10, 11 e 12 de Junho de 1922, devido à liderança empenhada de João Carlos Alberto da Costa Gomes, presidente da Junta Geral do Distrito de Lisboa e ex-presidente da Câmara Municipal de Lisboa, contando a comissão organizadora do III Congresso com Agostinho Fortes, então procurador do concelho de Oeiras, que fora o proponente da realização do I Congresso . Este importante movimento de opinião pública republicana reivindicava o aprofundamento democrático do regime, em particular a maior autonomia dos municípios mas também a restauração administrativa das províncias , através de um moderno Código Administrativo da República, adiado desde 1913, e pode-se surpreender a mentalidade política federalista em várias teses apresentadas pelos congressistas, na proposta de uma constituição municipalista e nos votos finais, onde, com grande insistência, ocorrem expressões como, por exemplo, autonomia, descentralização administrativa, federação dos concelhos, confederação nacional dos municípios, municipalização, províncias ou regionalismo. O programa federalista e municipalista republicano de 1891 pairou sobre este Congresso, constituído por 287 congressistas (representando 12 Juntas Gerais de Distrito e 159 Câmaras Municipais ), numa poderosa advertência a várias práticas centralistas do regime republicano.
Na proposta de Constituição Municipalista, da autoria de Costa Gomes e Augusto de Oliveira, que não chegou a ser votada, atribuía-se aos Congressos Provinciais (reunião anual) e ao Congresso Nacional Municipalista (reunião quinquenal) o lugar soberano da legalidade municipal, estipulando-se uma organização administrativa assente em freguesias, concelhos e províncias, sendo oito no continente e três nas ilhas, não se apresentando os distritos correspondentes: Minho (capital, Braga), Trás-os-Montes (Vila Real), Douro (Porto), Beira Alta (Viseu), Beira Baixa (Castelo Branco), Estremadura (Lisboa), Alentejo (Évora), Algarve (Faro), Açores (Angra), Madeira (Funchal), Cabo Verde (S. Vicente); as oito províncias no continente correspondiam à proposta que o senador do Partido Republicano Evolucionista, Ricardo Pais Gomes, tinha feito no Senado em Junho de 1914 . Propunha-se também, entre outras medidas, a recusa da tutela governamental sobre a vida administrativa municipal, a nomeação do presidente da comissão executiva do Congresso Provincial como Governador Civil, o voto obrigatório de todo o cidadão maior de quinze anos, a municipalização da instrução primária e da assistência social, a criação de um corpo de polícia civil municipal ou a abertura de sucursais do Banco de Crédito Social (banco de fomento) nas províncias e agências nos concelhos.
A tese de Lourenço Correia Gomes, delegado da Câmara Municipal de Cascais, chamava a atenção para a urgente aplicação da Lei nº 88, de 7 de Agosto de 1913, no que dizia respeito à entrega aos municípios da gestão dos serviços de abastecimento de víveres, fornecimento de água e luz, construção de fogos, estradas e vias férreas, exploração de baldios ou valorização de terrenos pobres, propiciando desse modo a obtenção de lucros municipais acrescidos. Outra interessante tese foi a que apresentou João António Gordo , delegado da Câmara Municipal de Castelo de Vide, onde se reclamava o estabelecimento de Ligas Municipais, com o fim de recrutar cidadãos idóneos para a administração municipal, e sua Federação Distrital, tendo em vista a promoção de candidatos municipalistas nas listas às eleições legislativas, bem como a organização de uma Confederação Nacional dos Municípios, com uma comissão executiva de exercício permanente (sediada nos Paços do Concelho da Câmara Municipal de Lisboa), competindo-lhe a representação municipal junto do Parlamento, do Governo ou de qualquer outra entidade.
Entre os setenta e três votos finais aprovados, podemos encontrar algumas reclamações urgentes: elaborar um Código Administrativo, estruturalmente descentralizador e municipalista, não figurando aí as autoridades delegadas do poder central, cujas funções administrativas deviam passar para as Juntas Gerais de Distrito, as Câmaras Municipais e as Juntas de Freguesia (votos 1º a 4º); federar as freguesias nos concelhos (voto 15º); seleccionar candidatos a deputado parlamentar de feição regionalista, conhecedores das realidades dos concelhos que representam, o que indicia uma aproximação ao mandato imperativo (voto 19º); compatibilizar o princípio da representação política (sufrágio universal directo) com o princípio da representação administrativa e económica (voto 22º); negociar com o Ministério das Finanças novos parâmetros de autonomia municipal na cobrança de impostos (votos 24º a 30º); publicar os documentos municipais de valor histórico ou de utilidade administrativa (voto 60º); realização do próximo Congresso na cidade do Porto (voto 73º).
A comissão executiva do III Congresso Nacional Municipalista dinamizou alguns Congressos Provinciais durante o 1º semestre de 1923: Estremadura, em Março; Beira Baixa, em Abril; Alentejo, em Maio; Trás-os-Montes e Douro/Beira Alta, em Junho. A proposta do mapa de oito divisões provinciais do continente, constante da referida Constituição Municipalista, foi debatida nos Congressos Provinciais. No Congresso da Estremadura, aprovou-se a referida divisão provincial, com a nomeação dos respectivos distritos: Minho (capital, Braga; distritos de Viana do Castelo e Braga), Trás-os-Montes (Vila Real; distritos de Vila Real e Bragança), Douro (Porto; distritos do Porto e Aveiro), Beira Alta (Viseu; distritos de Viseu e Guarda), Beira Baixa (Coimbra em vez de Castelo Branco; distritos de Coimbra e Castelo Branco), Estremadura (Lisboa; distritos de Lisboa, Santarém e Leiria), Alentejo (Évora; distritos de Évora, Beja e Portalegre), Algarve (capital e distrito de Faro). No Congresso do Alentejo, sugeriu-se a divisão entre Alto Alentejo (distrito de Portalegre) e Baixo Alentejo (distritos de Évora e Beja). No Congresso do Douro e Beira Alta, defendeu-se a necessidade de se discutir se o distrito de Coimbra “deve pertencer à província do Douro ou da Beira”. Esta “cruzada municipalista” devia percorrer no 2º semestre desse ano as outras províncias, tendo em vista a realização final do III Congresso Nacional Municipalista, a ter lugar na cidade do Porto, em 1924. Não chegou a concretizar-se essa sequência, pois a “endemia revolucionária” civil e militar adquiriu grande expressão entre 1924 e 1926, após o que se estruturou um Estado autoritário, corporativo e nacionalista.

7. Federalismo e Republicanismo Radical

A herança federal, por vezes confederal, do republicanismo histórico, teve, a nível partidário, as recepções mais significativas na Federação Nacional Republicana (1920-1921) e no Partido Republicano Radical (1923-1926), duas propostas políticas surgidas dentro da área do republicanismo radical. As suas raízes imediatas situavam-se no processo crítico desenvolvido à institucionalização da República unitária parlamentar, que exprimira várias tentativas de construção partidária, como, por exemplo, a Integridade Republicana (1911-1912) e o Partido Republicano Radical Português (1911-1913), onde o ideal federal se manifestou, ou a Aliança Nacional (1911-1913) e o Centro Reformista (1914-1915), sob a direcção de António Machado Santos, que viria a reassumir o federalismo em 1920.
A Integridade Republicana foi dirigida por João Bonança, republicano histórico federalista, que apresentou candidatura a 17 de Julho de 1911 para a eleição presidencial de 24 de Agosto seguinte , acabando por não recolher qualquer voto. Nos dias 6 e 7 de Dezembro seguintes, uma Assembleia-Geral dos fundadores aprovou o programa e a lei orgânica, elaborados por uma comissão, sendo os “princípios elucidativos” assinados por João Bonança . Nestes princípios, apesar de se aceitar transitoriamente o regime de República unitária parlamentar, criticava-se quer as exageradas atribuições concedidas ao poder legislativo, visto ser “um poder de Estado, absoluto, indissolúvel e irresponsável”, quer a fraqueza institucional do poder do Presidente da República, eleito pelo poder legislativo com funções “tão fracas e apoucadas que lhe imprimem a visão de uma manequim”. João Bonança considerava mais representativa da vontade da nação a eleição directa do Presidente, chefe do poder executivo, numa “república democrática (popular)”, uma república federal, formada de províncias ou estados autónomos, desta forma enumerados: Algarve, Alentejo, Estremadura, Beira Baixa, Beira Alta, Douro, Trás-os-Montes e Minho; Madeira e Porto Santo, Açores, Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe, Guiné, Angola, Moçambique, Índia, Macau e Timor. Quanto aos “objectivos dos poderes constituídos”, detalhava para cada área ministerial um rol de medidas legislativas, que não se afastavam globalmente dos outros ideários republicanos.
Outro pólo deste tipo de republicanismo, propondo uma república democrática, radical e progressiva, foi evidenciado pelo Partido Republicano Radical Português. Apesar da criação de alguns centros políticos em Lisboa e no Porto, não superou a estruturação grupuscular, desaparecendo praticamente no rescaldo da revolta radical de 27 de Abril de 1913, onde alguns membros se viram envolvidos. A 27 de Outubro de 1911, a comissão de redacção do projecto de programa , formada por Adrião Castanheira, Luís Soares e Henrique de Sousa Guerra, terminou os seus trabalhos. O programa recolhia uma posição doutrinária federalista descentralizadora e municipalista, propondo, quanto à reorganização dos poderes do Estado, três princípios de reforma constitucional: abolição da Presidência da República, conferindo as atribuições presidenciais nas relações gerais do Estado ao Presidente de uma Assembleia Nacional; constituição de Assembleias Provinciais por delegados dos municípios, com poder de legislar sobre segurança, economia e instrução provinciais; substituição do regime bicameral do Congresso da República por uma única Assembleia Nacional, eleita através de sufrágio universal directo, utilizando o sistema de representação proporcional. Seguiam-se as propostas quanto aos direitos políticos, instrução, justiça, agricultura, comércio, indústria e trabalho, descentralização, finanças, administração colonial, saúde e assistência, força pública e disposições gerais, entre as quais se destacam: igualdade civil e política para homens e mulheres, liberdade de imprensa, de reunião e de associação, “sem a possibilidade de leis especiais que a cerceiem”; exclusão absoluta de qualquer prática de ensino religioso nas escolas; criação dos ministérios da Instrução Pública, do Trabalho e Previdência, e da Defesa Nacional; eleição de jurados; lei sobre o habeas corpus; inquérito económico geral; descentralização administrativa e financeira municipal e nas colónias; extinção dos governos civis e das administrações de concelho; reforma da Caixa Geral de Depósitos.
Após o Sidonismo, num contexto de refundação institucional da República e de redefinição das ideologias políticas, ressurgiu o ideal republicano radical federalista em dois grupos políticos: a Federação Nacional Republicana, que não sobreviveria ao assassinato do seu presidente, António Machado Santos, na Noite Sangrenta de 19 de Outubro de 1921, apesar de ter na elite dirigente figuras prestigiadas como Manuel Gomes da Costa (1º vice-presidente) ou Joaquim Meira e Sousa (secretário-geral); o Partido Republicano Radical, para onde confluiu grande parte dos elementos da Federação, teve uma existência mais prolongada mas muito polarizada internamente em várias correntes de opinião, onde se evidenciaram José Pinto de Macedo, Alberto da Veiga Simões, José Lopes de Oliveira, Albino Vieira da Rocha, Tomás da Fonseca ou João Augusto Martins Júnior .
Na lei orgânica da Federação Nacional Republicana, aprovada em 26 de Dezembro de 1920, o capítulo I consagra o objectivo político de um Estado Confederado Português, administrativamente descentralizado e constituído pela área continental e ilhas (federação de municípios em Assembleia Provincial e federação de províncias em Assembleia Nacional), em conjunto com a área das províncias ultramarinas (transformadas em estados autónomos, após intensa colonização interna), apresentando-se também a intenção de conseguir o ingresso dos Estados Unidos do Brasil no futuro Estado Confederado, dadas as “afinidades étnicas e filológicas das duas nações” e a circunstância de serem “produtoras da quase totalidade dos géneros inter-tropicais” . O esclarecimento deste modelo político, em relação ao federalismo continental, foi feito pelo Professor Corrêa Salgueiro numa conferência proferida a 15 de Fevereiro de 1921 . O seu ponto de vista dispunha do conceito de “nação organizada”, com três esferas principais de descentralização (os municípios, as províncias e as corporações profissionais), do conceito de representação bicameral (Câmara dos Deputados, eleita por sufrágio universal directo, e Senado, com uma componente de representação profissional) e do conceito presidencialista de inspiração americana, base de um poder executivo forte: “A América, a grande e livre América, verdadeiro solo da democracia é um testemunho de quanto esta doutrina cabe dentro das exigências modernas” .
O pensamento político federalista surpreende-se também em alguns documentos oficiais ou de membros do Partido Republicano Radical. No programa aprovado no seu I Congresso de 1923, da autoria de José de Macedo, estabelecia-se, dentro de um republicanismo intransigente, a necessidade de renovar o modelo republicano de Estado unitário através de uma matriz profundamente descentralizadora, reequilibrando assim a relação entre os vários poderes: Presidente da República com poderes bem definidos, sendo, de facto, o chefe do poder executivo; uma só câmara legislativa; transformação do Senado numa Câmara da Economia Nacional, com representantes dos interesses regionais e profissionais; o município autónomo, a província como federação de concelhos e os distritos correspondendo à área das províncias . Os vinte pontos do programa mínimo apresentado ao II Congresso de 1924, da autoria de Tomás da Fonseca, não inovam em relação ao programa anterior .
No III Congresso de 1925, uma comissão presidida pelo coronel Alexandre Mourão, membro do directório, propôs algumas ideias para a renovação do programa na área político- administrativa, que foram aprovadas, onde se acentuou a intenção federalista, base do modelo político a precisar num projecto de Constituição: Assembleias de Freguesias (elegem as Juntas de Freguesias); Assembleias Municipais ou colégios primários (elegem as Câmaras Municipais e representantes às Assembleias Provinciais); Assembleias Provinciais ou colégios secundários (elegem órgãos executivos não especificados); Colégio Presidencial, constituído pelos membros dos órgãos executivos provinciais, donde saía, rotativamente, por eleição anual ou bienal, um representante que assumia a Suprema Magistratura da Nação na Ordem Nacional e Internacional (Presidente) e outro que presidia às Assembleias Provinciais (Vice-Presidente), podendo desempenhar as funções de Presidente na Ordem Interna e subindo a Presidente findo o ano ou biénio de exercício .
A formulação de uma República Federal descentralizada acarretava uma significativa alteração no programa de 1923, que propunha uma República Unitária descentralizada e que continuou também em vigor, evidenciando deste modo o jogo político entre várias correntes de opinião dentro do Partido Republicano Radical e a incapacidade a nível do directório para a enunciação de uma clara proposta estadual. Refira-se ainda que a corrente ultra-federalista, expressa no periódico Os Radicais, chegou a apresentar no Congresso de 1925, por intermédio de Eugénio Batáglia, director desse jornal e antigo socialista, a tese “Projecto de um Programa Radical Actualizado” - desconhecendo-se se foi aprovada -, onde se podia ler, por exemplo, a extinção da Presidência da República e do Senado, a passagem da administração política, civil ou hospitalar e do corpo de segurança pública para os municípios, a autonomia parlamentar das colónias, a extinção da Legação no Vaticano, e o reconhecimento da URSS . O IV Congresso de 1926 reafirmou as linhas programáticas de 1923, diluindo no discurso oficial dos republicanos radicais a proposta de reorganização federal do Estado republicano, mas manteve a urgência de reforçar os poderes do Presidente da República, de modificar a composição do Senado no sentido da participação dos interesses regionais e profissionais, e de pôr em prática uma descentralização administrativa, alargando as competências dos municípios autónomos.

8. Federalismo, Socialismo, Comunismo e Anarquismo

O federalismo descentralizador, de base municipalista, com uma dimensão internacionalista - “cooperar com os partidos socialistas de todo o mundo, na reforma das sociedades humanas” -, constituiu-se em ideário político do Partido Socialista Português, criado em 1875 com o nome de Partido Socialista em Portugal , constando do programa transitório aprovado no I Congresso de 1877 e que, revisto em 1882 e em 1895, teve uma versão final em 1907, a qual estava em vigor em 1911 e em 1915 . Neste programa, dos inícios da Primeira República, estipulava-se o objectivo central da abolição do Estado em todas as suas formas históricas e o estabelecimento de uma República Social, radicada em municípios autónomos, donde sairiam representantes eleitos através de sufrágio universal directo, que davam corpo a uma Federação Municipal, a qual tinha como finalidade constituir a Administração dos Negócios Públicos, eleita pela assembleia federal e a ela subordinada. O desenvolvimento destes princípios orientadores faz-se no programa municipal, aprovado no V Congresso de 1913 , para “disputar a influência municipal” dentro do regime republicano, propondo a consagração jurídica das seguintes reivindicações para a legitimação e configuração da estrutura municipal: voto obrigatório; sufrágio universal, directo, secreto, sem distinção de sexo; representação proporcional; mandatos revogáveis se não correspondem às aspirações dos eleitores; completa autonomia dos municípios, através de uma administração livre da tutela do poder central; direito de referendo; faculdade de cobrança de impostos, de expropriação e de actividade industrial.
Nos inícios de 1918, o socialista Eugénio Batáglia (aderirá ao Partido Republicano Radical) publicou um projecto constitucional , assinado com a data de 15 de Outubro de 1917, onde a nação portuguesa se organizava política e administrativamente numa República Federal poliárquica, sendo as poliarquias constituídas por cada distrito do continente, ilhas e colónias (artigo I). Constituíam órgãos de soberania o Congresso Nacional (poder legislativo, que era, em última instância, também poder moderador e executivo), formado por membros executores do governo das poliarquias, as Poliarquias (poder executivo e administrativo), a Cooperativa Nacional Judicial (poder judicial) e a Cooperativa Nacional de Higiene Pública (artigos VI, VII e XIV). Extinguia-se o lugar de Chefe da Nação (artigo LXXVII) e mantinha-se transitoriamente o Governo (somente com poder executivo), com ministros eleitos de entre os membros do Congresso Nacional e sem presidente efectivo (artigos LXXIX e LXXXX). O sistema de governo descrito afirmava-se altamente complexo e porventura impraticável, o que levou o seu autor a dar “o prazo máximo de 99 anos para o completo vigor desta Constituição” (artigo XCVI). A 5 de Agosto de 1918, o deputado João Monteiro de Castro, eleito em representação de São Tomé e Príncipe, apresentou uma moção parlamentar em nome do Partido Socialista Português onde se defendia a República Federal parlamentar - federação e autonomia dos municípios, na sua administração concelhia; federação da metrópole e colónias, em regime republicano parlamentar; municipalização progressiva da produção -, recusando assim o modelo enunciado no projecto de Eugénio Batáglia .
O Partido Comunista Português, fundado em 1921, com uma importante componente originária sindicalista revolucionária e anarco-sindicalista , vai propagar também o federalismo político, de dimensão universal, e propor, em 1925, uma Constituição, onde se consagrava um regime muito inspirado na formulação institucional da URSS, criada em 1922 . A República Portuguesa denominar-se-ia República Socialista dos Sovietes de Portugal, passaria a fazer parte da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e adoptaria a Internacional como hino e uma bandeira “vermelha, tendo ao centro um escudo, ostentando uma foice e martelo de ouro sobre fundo vermelho, entre raios de sol, os cabos colocados em cruz e cingidos por uma coroa de espigas, com as inscrições seguintes: República Socialista dos Sovietes de Portugal. Trabalhadores de todo o mundo, uni-vos!”.
O poder central e local pertenceria aos sovietes de deputados operários, soldados e camponeses, eleitos através de sufrágio universal directo, por cidadãos maiores de 18 anos, de ambos os sexos, com algumas restrições, como, por exemplo, sobre os indivíduos privados do uso da razão ou sem profissão, aos sacerdotes, aos oficiais superiores do exército e da armada ou aos membros da antiga família real. Na base, estariam os sovietes de freguesia e concelho, e a autoridade suprema residiria no Congresso dos Sovietes de Portugal e na Comissão Executiva do Congresso durante os intervalos da reunião do Congresso, que só funcionaria entre Janeiro e Março de cada ano. A Administração da República seria composta por catorze Comissários do Povo (Interior, Estrangeiros, Marinha, Guerra, Justiça, Trabalho e Seguro Social, Instrução Pública, Nacionalidades, Finanças, Agricultura, Abastecimentos, Higiene, Vias de Comunicação e Comércio), os quais só responderiam perante o Congresso ou a Comissão Executiva do Congresso. Quanto às províncias ultramarinas, previam, em relação a Macau, Timor e Índia Portuguesa, a imediata concessão de autonomia e liberdade de disporem de si mesmas; no que dizia respeito às outras, procuravam a extensão do regime soviético.
Os grupos políticos anarquistas eram federalistas por natureza ideológica e orgânica. No segundo manifesto anarquista português, publicado em Novembro de 1887 pelo grupo comunista-anarquista do Porto, estava bem explícita a finalidade política: “No futuro queremos o agrupamento livre dos indivíduos, por afinidades, simpatias e tendências, aspirações e vontades; só assim será respeitada a liberdade e a vontade de cada indivíduo dentro do grupo e dos grupos dentro da federação universal dos grupos produtores e consumidores” . Os estatutos de Setembro de 1919 da Confederação Geral do Trabalho, onde conviviam anarco-sindicalistas e sindicalistas revolucionários, consagram entre os principais objectivos o “agrupamento, sob a base federativa autónoma, de todos os trabalhadores assalariados do País, para a defesa dos seus interesses económicos, sociais e profissionais, pela elevação constante da sua condição moral, material e física” . Em 18 de Março de 1923, os militantes anarquistas reunidos em Alenquer, na sua Conferência Regional, votaram a criação da União Anarquista Portuguesa, tentando travar o declínio perante a concorrência dos partidários da Internacional Sindical Vermelha .
Em 1921, o diário A Batalha, porta-voz da Confederação Geral do Trabalho, acompanhou quer a formação em Março do Partido Nacional Africano, quer as suas actividades em defesa da emancipação dos “indígenas” da África portuguesa, numa convergência crítica face à política colonial e ao modelo unitário republicano . Na primeira notícia sobre esse partido registava-se a sua recente constituição “por naturais das colónias portuguesas no continente africano” e apresentava-se uma proposta federalista: o “propósito fundamental será a transformação do estado unitário existente, em estado federal e descentralizado, de modo que um verdadeiro pacto de harmonização de interesses e direitos se estabeleça entre todas as raças nacionais”, advogando a “autonomia económica, política e administrativa das colónias” . Esta ideia foi confirmada na mensagem entregue ao Presidente da República, António José de Almeida, durante uma audiência, onde se lia a necessidade de “reorganizar por completo a Nação, acabando de vez com o actual regime de dominadores e dominados”, e de “pôr a vigorar, quanto antes, um regime económico, político e social federalista […], numa franca e leal concórdia de todas as raças nacionais”. Em resposta, o Chefe de Estado declarou a sua simpatia pelo novo partido que vinha preencher uma lacuna na vida política . Entre os dirigentes desse partido, estavam António Borja Santos (cabo-verdiano, advogado, director de O Protesto Indígena), João Monteiro de Castro (são-tomense, advogado), Alberto Fernandes Ribeiro (angolano, comerciante), Amâncio da Silva Ribeiro (chefe de redacção de O Protesto Indígena) e António Gonçalves da Mota (editor de O Protesto Indígena).

9. A República Federal de Henrique Trindade Coelho

Henrique Trindade Coelho anunciou, desta forma, a Basílio Teles, por carta de 5 de Fevereiro de 1922, a publicação do seu projecto de reforma constitucional: “Mestre: O Janeiro e o Século de Domingo, doze, deverão publicar o meu projecto - inviável - de constituição de república federal. Quero solicitar, para ele, a benévola atenção de Vossa Excelência, como boa tentativa de ideias no sentido da libertação das províncias portuguesas e da restauração dos pelourinhos mutilados. O óbice terrível - a nossa falta de educação e instrução - não posso eu resolvê-lo no Terreiro do Paço: entrego-o a cada província, à ânsia de vida nova, aos seus valores esquecidos e desprezados. Na tentativa, porém, alguma coisa pode ficar: a bem de uma reforma administrativa e descentralizada. Isto, pelo menos. A mecânica incidida no projecto, reputo-a certa, pois me serviu de ensinamento o melhor das Constituições do mundo: a Constituição alemã de 11 de Agosto de 1919 […]” .
Uma semana depois, os diários O Primeiro de Janeiro e O Século publicavam o projecto, com trinta e dois artigos e uma introdução justificativa, onde se consagrava a República Federal como forma de governo . Regressava o património intelectual do republicanismo federalista português, marcado pelo doutrinarismo de Henriques Nogueira, João Bonança, Magalhães Lima ou Alves da Veiga, ao que Trindade Coelho juntava o constitucionalismo federalista americano, brasileiro e suíço, o debate na Assembleia Nacional Constituinte de 1911, a Constituição alemã de 1919 (muito utilizada) e a experiência presidencialista da “República Nova”, com destaque para o sufrágio universal directo, masculino, quer para a Presidência quer para o Parlamento . Trindade Coelho argumentava com a urgência da autonomia institucional das províncias e da descentralização administrativa nos concelhos para “libertar o país do centralismo do Terreiro do Paço”, que o regime republicano tinha agravado. Criticava o “carácter artificial” dos distritos e valorizava o “carácter natural” das províncias, com argumentos historicistas retirados da História de Portugal, de Oliveira Martins, e da Pátria Portuguesa, de Teófilo Braga, e aí radicou a sua idealização: “A Nação Portuguesa abraça como forma de governo a República Federal e é constituída pela associação perpétua e indissolúvel dos Estados do Continente e Ilhas Adjacentes, com as colónias e o município em que esteja estabelecida a capital da União” (artigo 1º).
A nova República Federal portuguesa estabelecia uma União entre seis Estados do Continente, com capitais provinciais provisórias (Entre Douro e Minho - Porto, Trás-os-Montes - Vila Real, Beira - Coimbra, Estremadura - Santarém, Alentejo - Évora, Algarve - Faro), dois Estados das Ilhas (Madeira - Funchal, Açores - Ponta Delgada), um Município autónomo (onde estiver situada a capital federal - Lisboa ou outra cidade) e os Estados das Colónias (não especificados), que deviam dispor das suas próprias Constituições. Cada Estado provincial era uma união de concelhos ou municípios, que, por sua vez, eram uma união de paróquias ou comunas, e o distrito, como unidade administrativa do Estado, não era totalmente repudiado, deixando-se a decisão para o primeiro Governo da União. O Congresso Constituinte de cada Estado do Continente e das Ilhas seria formado por um deputado eleito por cada Câmara Municipal nos concelhos de 3ª ordem, dois deputados nos concelhos de 2ª ordem e três deputados nos concelhos de 1ª ordem, elegendo a Câmara Municipal do Porto seis deputados no Estado de Entre Douro e Minho, o que evidencia uma forte vontade municipalista no acto fundador, já bem patentes nas dedicatórias iniciais ao projecto: “Às memórias de Alexandre Herculano e Henriques Nogueira, patriarcas do municipalismo em Portugal. Às Câmaras Municipais portuguesas, como símbolos dos velhos baluartes das liberdades públicas”.
O Governo da União exercer-se-ia através do poder executivo do Presidente da República, acompanhado de um Vice-Presidente da República (eleitos pelo sufrágio universal directo, por um período de seis anos), havendo um Conselho Económico da União inspirado naquele que figurava no artigo 165º da Constituição de Weimar de 1919 (igual número de representantes dos patrões e dos operários e empregados, por um lado, e, por outro lado, o mesmo número desses para os representantes das Câmaras Municipais) e um Congresso da República bicameral, com uma Câmara dos Deputados (eleita por sufrágio universal directo, segundo o método proporcional, garantindo a representação das minorias) e um Senado (metade são eleitos pelos Parlamentos do Estado e pelos corpos administrativos superiores do município federal e colónias; a outra metade pelos representantes das classes e profissões, sendo igual o número de representantes dos patrões e dos operários e empregados). O sistema de governo era presidencialista democrático com recurso à representação de corpos administrativos e sociais. Quanto ao Governo dos Estados, o poder executivo seria exercido por um Presidente do Estado (eleito pelo Parlamento ou pelas Câmaras ou de forma directa pelos cidadãos), haveria um Parlamento unicameral (eleito por sufrágio universal directo, segundo o método proporcional, garantindo a representação das minorias) e o Conselho Económico do Estado tinha uma composição repartida igual à do Conselho Económico da União. No sistema político dos Estados a opção presidencialista era facultativa e a representação corporativa (apenas social) limitava-se ao nível consultivo.
O projecto obteve pouca audiência, salientando-se o entusiasmo da Federação Académica de Lisboa, que aprovou um voto de louvor e o debate no contexto açoriano . As observações de Joaquim Manso sobre os riscos da organização federalista multiplicar os “tentáculos da centralização” no seio dos futuros Estados federados, por falta de educação política dos portugueses , não provocaram em Trindade Coelho grande polémica, mas sim reparos ao redor da diferença entre centralização política e centralização administrativa, da tradição municipalista e federalista republicana ou do benefício das experiências descentralizadoras na Inglaterra e nos Estados Unidos da América . Na revista Seara Nova encontra-se um artigo de contestação ao projecto, que chamava a atenção para a inexistente tradição federalista em Portugal - ao contrário da Suíça - e para a carência de educação cívica dos portugueses, limitadora da assunção de competência política governativa a nível local e regional. No entanto, propõe-se uma crescente e cuidadosa autonomia dos municípios .
A pulsão regionalista e municipalista, onde Henrique Trindade Coelho se inseriu, exprimiu uma forte dinâmica na primeira metade dos anos 20 em torno de campanhas promovidas por jornais (O Século, A Pátria ou A Época), por sociedades, organizações e ligas (Sociedade Propaganda de Portugal, Centro Católico Português, Cruzada Nacional D. Nuno Álvares Pereira, Núcleo de Ressurgimento Nacional), por congressos regionais (Algarve, já em 1915; Trás-os-Montes - 1920; Beiras - 1921, 1922, 1928, 1929; Ribatejo - 1923; Minho - 1928; Alentejo, só em 1933, apesar de ter ocorrido em 1915 o referido 1º congresso municipalista alentejano), pelo segundo congresso nacional municipalista em 1922 e por congressos provinciais na Estremadura, Beira Baixa, Alentejo, Trás-os-Montes, Douro e Beira Alta em 1923, porém o ideário federalista foi-se diluindo . A partir de 1924, ganhou, em contrapartida, audiência pública, o modelo de Estado unitário, autoritário e corporativo, para o que também muito contribuiu o publicismo político de Henrique Trindade Coelho, nessa época já um dos mais vigorosos líderes de opinião do autoritarismo conservador e nacionalista. Os processos sediciosos ganharam uma tensão crescente, colocando a dinâmica dos nacionalismos civis em conexão com os nacionalismos militares .

10. A República Federal de Sebastião de Magalhães Lima

No texto de introdução ao volume das actas do II Congresso Nacional Municipalista, saído em 1923, Sebastião de Magalhães Lima, republicano federal histórico entusiasmado pela ideia de Estados Unidos da Europa , fundamentou teoricamente a urgência de renovação do regime republicano através de uma República Federal municipalista, na tradição doutrinária do seu pensamento muito influenciado pela visão de Herculano, Henriques Nogueira, Proudhon, Pi y Margall ou Malon , declarando explicitamente: “Obtida a autonomia municipal, pela qual devemos pugnar sem tréguas nem repouso, impõe-se, como consequência, a federação dos concelhos. Eu só compreendo as repúblicas, caracterizadamente federativas, como a da Suíça e a do Brasil. As repúblicas unitárias são monarquias disfarçadas. Pela federação dos municípios, chegaremos à federação das províncias …” .
Magalhães Lima evocou aí a presidência da Câmara Municipal de Coimbra do Professor da Faculdade de Direito José Ferreira Marnoco e Sousa, entre 1904 e 1910, cuja gerência “ficou como um exemplo e uma lição a todos os apóstolos do municipalismo no nosso país” , salientando também as intervenções proferidas no II Congresso Nacional Municipalista por João Carlos Alberto da Costa Gomes (sobre a história do município nacional), Lourenço Correia Gomes (sobre o sistema da municipalização de Cascais) e João António Gordo (sobre a confederação nacional dos municípios), arautos do município descentralizado que Magalhães Lima considerava ser o alicerce da República: “Enquanto se mantiverem as velhas fórmulas centralistas, que nos ficaram da monarquia, nunca a República poderá atingir o ideal de solidariedade nacional, que é a base de uma sólida democracia …” .
O texto de Magalhães Lima moldava-se na fórmula cooperativa, municipalista e federalista republicana, fundamento de um ideário orgânico que era enunciado a partir de patamares superiores de democracia em liberdade, sempre em relação com as condições específicas do território, da raça, da tradição histórica e da solidariedade social: indivíduo livre, família livre, paróquia livre, município livre, província livre, Estado livre, Humanidade livre. Após criticar o centralismo administrativo vigente, herdeiro da nossa tradição liberal oligárquica, propõe o município autónomo, federado na província, que considera ser a tradicional divisão do território e da população, como alicerce do novo regime federativo da República, e apresenta estas medidas imediatas: extinção dos cargos de governadores civis, administradores de concelho e regedores de freguesia; promoção municipal da instrução popular; deputado representante do concelho que o eleger (mandato imperativo). Os princípios da liberdade, da autonomia e da identidade surgiam, deste modo, como matrizes da organização política e social, derramados em sucessivas realizações federais que, partindo da Federação Portuguesa, continuaria na Federação Ibérica, na Federação das Raças Latina, Germânica e Eslava, na Federação Europeia, para, ao longo de um demorado processo, se chegar à Federação da Humanidade. Assim tinha entrevisto Magalhães Lima, em 1893, na sua obra La Fédération Ibérique, ideário utópico ao qual se manteria sempre ligado.
O ressurgimento da ideia de Estados Unidos da Europa, criada e divulgada por Victor Hugo e Charles Lemonnier em meados do século XIX, propiciou uma nova vaga europeísta a partir da criação da Sociedade das Nações em 1920 e que foi alimentada também com a publicação em 1923 do livro Pan-Europa, escrito pelo Conde Richard Coudenhove-Kalergi, onde se retomava o projecto de uma União Pan-Europeia, exposto no ano anterior numa mensagem dirigida a vários jornais. A sua recepção em Portugal só teria eco após a reaproximação franco-alemã concretizada nos Pactos de Locarno (Outubro de 1925) , contudo o contexto de crescente agitação nacionalista, autoritária e antiparlamentar inviabilizou a formação de uma forte opinião pública europeísta, base da refundação democrática e progressista da República portuguesa. Já em Ditadura Militar e, depois em Estado Novo , sob a tutela do nacionalismo político e económico de Oliveira Salazar, acentuar-se-ia a crítica e a rejeição institucional dessa ideia.

11. A República Federal de João Rodrigues Aragão

Em finais da I República, cremos que o livro Soluções Práticas da Política Nacional ou o Estado Federativo , de João Rodrigues Aragão, professor do Liceu de Faro, saído nos inícios de 1926, foi a última ocorrência significativa proponente de um regime político republicano federal. Escrito sob o impacto do golpe de Estado falhado de 18 de Abril de 1925, entendido erradamente como movimento monárquico restauracionista, o Autor desenvolveu o que considerava ser um “ensaio de lucubração política”, fantasiando o regresso governativo da monarquia a Lisboa mas perdurando no resto do País o regime republicano, a retirada do governo republicano e do Presidente da República para o Porto e a organização nacional da resistência republicana através de Juntas Governativas Provinciais para a reconquista de Lisboa.
É no interior deste processo de efabulação que surgirá a proposta de uma república federativa, considerada a única solução republicana para a “falência” do Estado unitário - “a república unitária era um estado revolucionário latente”, dominado por “clientelas nefastas e sugadoras”, por “clientelas dos revolucionários civis” e pela “plutocracia” -, e recorria aos exemplos das repúblicas federativas dos Estados Unidos da América do Norte, do Brasil, da Argentina e da Suíça . O modelo apresentado reconhecia a concepção de República una mas divisível e estabelecia: sufrágio universal indirecto, masculino e feminino, de maiores de 18 anos, que soubessem ler e escrever; mandato imperativo; eleição indirecta do Presidente da República, justificada pelo elevado analfabetismo, caso contrário optava-se pela eleição directa, por um período de seis anos; Conselho de Estado, junto do Presidente e das Juntas Governativas Estaduais (voto consultivo); Presidente da República nomeava livremente os Ministros (chefe do poder executivo); unicameralismo (Câmara dos Deputados)
Quanto à divisão política e administrativa, o território seria constituído por um Estado federal (sede da Presidência, do Governo e do Parlamento da Federação), correspondente ao distrito de Lisboa (sede na capital) e por 13 Estados federados (Juntas Governativas, Parlamentos Estaduais) agregando dois distritos, no continente e ilhas: Porto e Vila Real (sede, Porto), Braga e Viana (Braga), Bragança e Viseu (Viseu), Coimbra e Aveiro (Coimbra), Castelo Branco e Guarda (Castelo Branco), Leiria e Santarém (Leiria), Évora e Portalegre (Évora), Faro e Beja (Faro), Funchal e Ponta Delgada (Funchal), Horta e Angra (Horta), Cabo Verde, S. Tomé e Guiné (Cabo Verde-S. Vicente), Angola (Luanda), Moçambique, Índia, Macau e Timor (Moçambique-Lourenço Marques). Os Estados juntavam distritos e estes subdividiam-se em concelhos e freguesias.
Terminava, com estas frases, o último momento do “canto do cisne” republicano federal português, a pouquíssimos meses da revolução de 28 de Maio de 1926: “Não era esta uma nova república, era a única república portuguesa que como tal e genuína se poderia considerar. Gritai: Viva a república, a república federativa de Portugal!” .

12. Consideração final

Sendo Portugal, entre 1910 e 1926, um Estado-Nação perfeitamente consolidado, sem problemas de unidade política, territorial, social, étnica, linguística ou religiosa, não admira que a pendência ideológica essencial, num contexto geopolítico europeu marcado, primeiro, pela tensão entre Estados-Nações e Impérios, depois pela afirmação do princípio de nacionalidade, fosse entre diversos nacionalismos, ao redor do modelo de organização política do Estado, do relacionamento entre o poder civil e o poder religioso, dos processos de construção da memória histórica ou das formas de representação da identidade nacional. Generalizou-se, porém, uma forte visão política e social organicista, com o primado dos grupos sobre os indivíduos, vinda do positivismo sociológico comtiano (Léon Duguit) e do institucionalismo neotomista (Maurice Hauriou), que, apesar de recepções políticas contraditórias, punha em causa, crescentemente, nessa época, o liberalismo, o individualismo, o contratualismo, o estado arbitral e a livre economia de mercado .
Quanto à proposta federalista para a organização política da Nação, apesar da sua importante projecção histórica no imaginário político do republicanismo português, a verdade é que, aquando do debate sobre a construção do novo regime político-constitucional republicano, os defensores do republicanismo unitarista, associado à corrente republicano-liberal, de pendor jacobino, venceram os defensores do republicanismo federalista, associado à corrente republicano-socialista, de pendor democrático . As propostas federalistas sobreviveram e re-emergiram, até à Ditadura Militar de 1926, evidenciando-se vários publicistas republicanos e grupos políticos de matriz republicana radical, socialista, comunista ou anarquista, e a revitalização do regionalismo através dos vários congressos regionais permitiu a convergência de federalistas descentralizadores com unitaristas descentralizadores, pelo menos ao redor do aprofundamento do autonomismo municipal.
A definição federal evidenciada verteu-se em várias formalizações de República, entendidas como respostas regeneradoras do regime político da Primeira República ou como respostas da sua superação radical, e respondeu de diversas formas à articulação entre federação, estados e municípios: República Federal descentralizadora, República Federal parlamentar, República Federal poliárquica, Confederação Republicana, República Social municipalista, República Socialista soviética. Essencialmente, como se viu, manifestou-se uma corrente plural de crítica a diversas derivas centralistas e oligárquicas do poder republicano e afirmou-se a dinâmica do ideário descentralista, municipalista e regionalista português, bem expresso em 1922 durante as sessões do II Congresso Nacional Municipalista - ampla e participada tribuna do poder local português -, que Sebastião de Magalhães Lima considerou ser uma verdadeira escola de educação cívica a fim de “levantar o espírito público adormecido e de criar um ideal, pela colaboração efectiva do povo na administração pública […]. O alicerce da República está no município descentralizado […] ”.

Revista de História das Ideias, vol. 27 (República), Coimbra, 2006, pp. 251-291.

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