O período terminal da I República, compreendido entre 1919 e 1926, tem sido, até recentemente, seriamente subestimado, quando não maltratado, pelo geral da historiografia que se debruça sobre os 16 anos do regime republicano.
Desde logo, porque o discurso ideológico estadonovista ou monárquico-conservador estabeleceu um padrão interpretativo duradouro, alimentado pela aparente confirmação que os factos da aguda e agitada crise da República lhe pareciam conferir. Na realidade, a República no pós-guerra não representaria senão um prolongamento agravado da caótica inviabilidade evidenciada na sua primeira fase. Era, assim a crismou o criticismo antiliberal, a “Nova República Velha”. E parecia afundar-se num caos absurdo e incompreensível, numa desordem afinal inscrita no próprio código genético do republicanismo e das suas pretensões democráticas. Por sobre o alegado “terrorismo” e o caviloso panorama de abusos, perseguições, revoluções, greves, o diagnóstico da direita autoritária da época – quase ipsis verbis retomado pela historiografia neoconservadora mais recente – desaguava numa conclusão precisa que não cessará de enfatizar: a República em geral, e a “Nova República Velha” em particular, com o seu infinito e irracional cortejo de licenciosidade e subversão, evidenciavam o perigo e a impossibilidade do “demoliberalismo” como regime. Por isso despertavam o “apelo da Nação” a uma “ordem nova” que, depois das hesitações da Ditadura Militar, o Estado Novo finalmente consagraria. Ou seja, a explicação tremendista da “Nova República Velha”, ontem como hoje, revelava-se um discurso essencialmente ideológico e de propósitos legitimadores do derrube militar da República, da repressão contra a resistência reviralhista e operária e do advento do fascismo estadonovista.
Poderia essa versão diabolizante aparentar ter alguma razão, mesmo para os historiadores que não acompanhavam tal tipo de conclusões, porque nesse dramático pós-guerra, efectivamente, a I República, ou melhor, a esquerda republicanista e os seus apoios político-sociais, iriam perder as batalhas decisivas que os opunham às direitas antiliberais em ascensão (e a parte da direita republicana a estas rendida). Mas é precisamente esse conflito moderno, esse outro contexto histórico, é essa nova realidade que marca a viragem para a modernidade política da Nova República do pós-guerra. Ou seja, é esse quadro comum ao ocidente que, também em Portugal, redefine e reorganiza a conflitualidade política, os partidos e os seus programas, os sistemas de aliança, os argumentários, os métodos de luta e de mobilização. É o prenúncio da época internacional dos fascismos, das coligações de forças à direita para derrubar a ordem liberal e das hesitantes e contraditórias tentativas pioneiras, à esquerda, de lhe fazer frente. É o tempo, também em Portugal, de dramáticas separações de águas, da radicalização de campos, de esvaziamento político do espaço do centro, das capitulações do liberalismo conservador à “terceira via” corporativa, nacionalista, autoritária, antidemocrática e anticomunista que logo emergiu e se demarcou do inicial consenso mais alargado da Ditadura Militar.
A Nova República, nos seus sete breves anos, constitui, portanto, o tempo e o modo de integração da sociedade portuguesa no quadro do grande conflito social e político que se sucede internacionalmente à Grande Guerra e à revolução russa. Época, desde logo, de ofensiva revolucionária do operariado europeu, marcada pelo insucesso global (Hungria, Alemanha, Finlândia, Itália, Espanha…). A que se sucedem, por aproximações sucessivas, as reacções autoritárias de novo tipo à impotência do liberalismo e à ameaça revolucionária do socialismo e do comunismo. Respostas que se estabilizam por diferentes vias, desde o golpe militar às eleições indo até à guerra civil, nas várias modalidades do fascismo europeu. Também entre nós, de 1919 a 1926, se reorganizam a política e os discursos, à esquerda e à direita, para travar esses combates decisivos no decurso dos quais saem derrotadas a República liberal e as forças que, mais do que simplesmente apoiá-la, a queriam regenerar política, económica, e socialmente.
Mas o golpe militar de 28 de Maio de 1926, em rigor, não é ainda a estocada final no republicanismo. É sabido que parte da esquerda republicana apoiará o golpe militar, visto, sobretudo, como um movimento de “regeneração nacional” contra o governo dos “bonzos” do PRP e do seu chefe, António Maria da Silva. Não é aí que cai a I República. Defendida de armas na mão pela esquerda republicana, aliada ao que restava do movimento operário organizado (aquilo a que se chamou o reviralhismo), a I República cairá nas barricadas das revoluções com que essa tardia reconstrução do “bloco do 5 de Outubro” procurou desesperadamente fazer face à Ditadura Militar, em 1927, 1928 e 1931, e restaurar uma República renovada.
É no contexto dessas sucessivas derrotas do reviralhismo que verdadeiramente colapsa a República liberal e se vão criar as condições para a transição da Ditadura para o Estado Novo, ou seja, se vai acelerar o processo de fascistização do regime. É aí, com a derrota final da I República e das esquerdas sociais e políticas que se batiam por um novo republicanismo e com a vitória da coligação das direitas autoritárias e anti-liberais, é só aí que termina a guerra civil larvar que divide a sociedade portuguesa desde o início da crise terminal da monarquia constitucional e do liberalismo oligárquico.
Dois campos em confronto. A falência do centrismo
Tinha, por isso, razão António Telo no seu trabalho pioneiro e solitário sobre a decadência e queda da I República , quando representava o pós-guerra política e socialmente como um conflito bipolar entre um campo radical e um campo nacionalista conservador, cada um procurando, num combate sem quartel, impor as suas soluções para a crise. Fosse para salvar a República democratizando-a política e socialmente, fosse para a superar em nome desse salvífico nacionalismo autoritário de novo tipo que começava, com o exemplo mussoliniano, a seduzir as direitas europeias.
No estreito espaço que sobrava entre os dois pólos, cedo degenerou a tentativa do novo PRP implementar, balanceado pela curta prosperidade do pós-guerra, entre 1919 e 1921, um modelo político económico de governação centrista, assente na acalmação política da direita, no apoio das “forças vivas” da indústria, do comércio e do mundo urbano em geral, nos preços livres, nos impostos e salários baixos, no operariado pacificado pelo PS chamado governo. A crise internacional de 1921 e os seus efeitos dramáticos no plano financeiro e económico estoiraram com esse sonho de um desenvolvimento inflacionário, generosamente regado pela emissão de moeda.
O PRP de António Maria da Silva, rapidamente se transformou num partido conservador e promíscuo com a oligarquia, um partidão situacionista de “bonzos” que controlavam sem alternativas (que não fossem as que eles próprios efemeramente consentissem) as máquinas do Estado, o cacicato eleitoral, os negócios e as maiorias no parlamento. A partir de 1921 (com a derrocada do modelo liberal desenvolvimentista, com a agudização da conflitualidade social, com a “noite sangrenta”, com o crescente apoio das “forças vivas” ao campo da subversão golpista anti-republicana), a preocupação central do PRP seria a de sobreviver como partido do poder, fazendo toda sorte de cedências no plano político e económico à direita e aos interesses na esperança de as conter. Acabaria em desespero de causa por pendurar-se no próprio golpe militar em preparação e contra ele dirigido.
Na realidade, a assumida cumplicidade do PRP com as direitas nacionalistas golpistas a partir de 1922, o desmantelamento do dispositivo da GNR em Lisboa, a intensificação da repressão sobre o activismo operário (as deportações sem julgamento, a violência policial à margem da lei), o desmantelamento da obra radical nos planos económico e financeiro (revogação de boa parte das medidas financeiras dos governos alvarista, de Rodrigues Gaspar e do ministério “canhoto” da Esquerda Democrática), a expulsão do PRP de José Domingos dos Santos e dos seus partidários, tudo isso, sobretudo após o regresso ao poder de António Maria da Silva, em 1924, teve um duplo e trágico efeito. Por um lado, empurrou definitivamente as direitas (liberais e antiliberais) e o geral da elite do Exército, na realidade pouco dispostos a reconhecer os favores dos “bonzos”, para o golpe militar subversivo. Por outro, desmantelou a frágil unidade do pólo das esquerdas e o que restava da sua capacidade de resistir à conspiração em marcha. A 28 de Maio de 1926, a União dos Interesses Sociais e outras formas de frentismo das esquerdas políticas e sociais para barrar o “militarismo” e o “fascismo” já não se reconstituem. Na realidade, a Esquerda Democrática de José Domingos dos Santos veio para a baixa lisboeta festejar o golpe militar contra os “bonzos”, os alvaristas conspiravam por detrás de Mendes Cabeçadas, os seareiros especulavam sobre a bondade de uma eventual Ditadura de competências, os radicais participavam activamente no golpe em Braga e na Margem Sul com a marinhagem, e até os sindicalistas da CGT, com as suas hesitações para se mobilizarem, mostravam que o activismo operário estava pouco disposto a bater-se pela “republica das deportações” e dos “bonzos”.
Precisamente, a rendição do liberalismo republicano perante a conspiração militar e civil contra a República liberal, estivesse ele no poder, na oposição de direita ou até na de esquerda, é a primeira característica marcante da evolução da luta política no Portugal do pós-guerra.
A emergência incerta de uma esquerda republicana
Como acertadamente tem assinalado a mais recente investigação , uma outra novidade política essencial desta Nova República é a incerta e inorgânica emergência de uma esquerda republicana. Titubeante, ainda, na torrente da sucessão governativa que vai de 1919 a 1923, surgindo pontualmente em governos de hegemonia “democrática”, e, sobretudo, a propósito de medidas de índole fiscal e financeira , os vários grupos da esquerda republicana vão ocupar mais consistente e duradouramente o poder entre Dezembro de 1923 e Fevereiro de 1925 (ministérios de Álvaro de Castro, Rodrigues Gaspar e José Domingos dos Santos). É o quase “biénio radical”, interrompido pela decisão do PRP derrubar o governo “canhoto” para acalmar a agitação subversiva das direitas.
Essa ala radical (no sentido político francês do termo) do republicanismo, grupusculizada em pequenos partidos ou grupos que tinham cindido do PRP ou se tinham constituído à margem dele no calor das refregas do início dos anos vinte (os ziguezagueantes “reconstituintes” de Álvaro de Castro, os radicais do “outubrismo”, os mais conspícuos intelectuais seareiros, os “canhotos” da Esquerda Democrática), nunca chega a agrupar-se num grande partido radical republicano, não assume formalmente um programa único de concentração política dessa área, nem define uma política clara de alianças. Os partidários de Álvaro de Castro, antes de se chegarem à esquerda, começam até por ser uma dissidência de direita do PRP, participante na fundação do Partido Nacionalista em 1923.
Mas a sua governação conjunta de 1923 a 1925 , retomando e aprofundando medidas conjunturalmente avançadas em governos do PRP pós-1919 , abre indiscutivelmente um novo espaço programático no republicanismo: imposto progressivo sobre o rendimento, tributação dos lucros de guerra, actualização da contribuição predial, combate à especulação financeira, controlo dos câmbios, fiscalização da actividade bancária por delegados do Estado, ensaio de reforma agrária nos campos do Sul, tabelamento dos bens de primeira necessidade, lei do inquilinato, lei das 8 horas de trabalho, seguros sociais obrigatórios, legalização da Confederação Geral do Trabalho, etc…. Na realidade, são a imagem de um outro republicanismo procurando novas soluções para a crise social, para o descontrolo financeiro, para a estagnação e a sabotagem económica, para a ameaça dos interesses oligárquicos e da direita anti-liberais, isto é, para os grandes desafios colocados pelo impasse do modelo liberal-republicano. E, com isso, configuram a tentativa de superar o tradicional jacobinismo conservador e oligárquico de antes e de durante a guerra e de definir programaticamente um republicanismo social-democrata, reformista, uma esquerda republicana de natureza idêntica ao que será em Espanha a Esquerda Republicana de Manuel Azaña nos anos seguintes.
A tentativa de um bloco “republicano e social”
Esse processo de concentração radical republicano, que talvez a tardia constituição do Partido de Esquerda Democrática de José Domingos dos Santos, em 1925, pudesse anunciar, ficou todavia por concretizar no plano partidário. O que dificultaria, por seu turno, as tentativas de articulação e de aliança deste radicalismo republicano com os activistas operários e sindicais num pólo estável à esquerda. Uma espécie de reconstituição do “bloco do 5 de Outubro”: um bloco social e político que desse corpo às alternativas programáticas à crise por parte da esquerda republicana em aliança com o movimento operário. Efectivamente, essa aliança foi ensaiada, mas de forma pontual, instável e tardia, pois só se começou a delinear conjunturalmente durante os governos do “biénio radical”. Entre 1919 e 1921, na maré alta da ofensiva sindicalista e grevista do pós-guerra , o confronto com os governos da República, as medidas excepcionais de repressão anti-sindicalista, o bombismo e os atentados, ou seja, o conflito aberto foi o que caracterizou a relação entre o operariado organizado e os ministérios republicanos. As expectativas pacificadoras e enquadradoras eventualmente alimentadas no PRP pela entrega da pasta do Trabalho ao Partido Socialista logo em 1919 (daí resultou o retomar dos projectos das 8 horas de trabalho e dos seguros sociais obrigatórios), duraram os curtos meses que durou a presença do “camarada Augusto” no Governo .
Só quando a afirmação do radicalismo republicano começa a assumir respostas não só no campo fiscal e financeiro, mas também no plano social, isto é, só entre os finais de 1923 e o início de 1925, é que as convergências possíveis nesse bloco se traduzem em mobilização política real. Concretamente, nas “jornadas de Fevereiro” de 1924 que arrancam, a 14, com uma manifestação contra a ameaça do golpe militar das direitas tido por iminente e contra a ditadura que ele anunciaria. A Coligação Republicana Social que dela sai convoca para 17 desse mês um comício em que terão participado 20 000 pessoas. E a 22 de Fevereiro, as Juntas de Freguesia de Lisboa e de outras cidades do país, em conjunto com a CGT e “várias tendências sociais e republicanas” , convocam uma manifestação para a capital de protesto contra a carestia de vida e os seus responsáveis, “os potentados da finança e os detentores dos monopólios”, exigindo medidas de justiça fiscal contra os especuladores cambiais e as “fortunas”. E expressando mais uma vez a sua “repulsa contra a intentona reaccionária que se prepara na sombra” e a “ideia criminosa de reduzir uma população explorada à escravidão máxima .
Um ano depois terá lugar uma enorme manifestação popular em Lisboa, convocada por uma União dos Interesses Sociais – o contraponto político e social da União dos Interesses Económicos, braço político do patronato – em defesa do governo da Esquerda Democrática de José Domingos dos Santos que a maioria do PRP no parlamento acabava de derrubar.
Em 1926, como assinala Ana Catarina Pinto , ainda se verificam pontualmente iniciativas frentistas de esquerda (sindicalistas, comunistas, socialistas, seareiros, esquerdistas, radicais, libertários) em campanhas contra o fascismo e as ditaduras de que as direitas se faziam assumidamente defensoras e contra a deportação de duas centenas de implicados no golpe radical de 2 e 3 de Fevereiro desse ano (tropa insurrecta da artilharia de Vendas Novas ocupara o Forte de Almada sob a liderança do P. Radical), em contraste com o que acontecera com os conspiradores de direita nos golpes militares de 18 de Abril e de 19 de Julho de 1925, todos absolvidos .
Mas eram acções pontuais. O bloco radical dificilmente se estabilizava organicamente. Porque o próprio republicanismo de esquerda o não conseguia fazer enquanto interlocutor do movimento operário. Depois, porque mesmo no governo de Álvaro de Castro a repressão anti-sindicalista se intensificaria sobretudo com a deportação sem julgamento, para África, dos alegados membros da “Legião Vermelha”, o que se repetiria após a queda do governo de José Domingos dos Santos e a recolocação do tristemente célebre tenente-coronel Ferreira do Amaral à cabeça da Polícia lisboeta(demitido anteriormente pelo governo “canhoto”). O clamor sindicalista contra a “República dos assassinos” e a “República das deportações” não facilitava os entendimentos, sobretudo quando as agressões vinham de um ministério alvarista/seareiro.
Finalmente, a formalização do bloco frentista era dificultada pela situação de refluxo e de divisão que conhecia o movimento operário desde as derrotas sofridas nas duras greves de 1920 e 1921, especialmente na longa greve geral ferroviária deste ano . Se os efeitos da crise económica, do desemprego, da progressiva desmobilização – a CGT entre 1919 e 1923 teria perdido 45 000 inscritos – colocam o movimento operário na defensiva, as divisões ideológicas no seu seio agravam a situação. Em parte elas reflectiam as dificuldades e as dúvidas próprias dessa fase de recuo e desânimo. Mas, no essencial, a cisão operada pelos simpatizantes do bolchevismo na CGT anarco- sindicalista com a criação do PCP, em 1921, e, talvez ainda mais, a posterior rotura explicitamente sindical dos partidários da Intersindical Sindical Vermelha, vinham evidenciar a existência de duas estratégias políticas, organizativas e ideológicas distintas e em acesa disputa pela hegemonia num movimento operário em recuo e que só em questões pontuais conseguiria momentos curtos e frágeis de unidade na acção.
Apesar destas dificuldades, o certo é que a este novo campo da esquerda republicana e social nem sequer lhe faltou um braço armado e, por vezes, até 1922, fortemente interventor. A GNR, concebida, rearmada e reorganizada pós 1919 como força pretoriana da nova República do PRP barricada em Lisboa, seria, na realidade, um permanente braço armado das desordenadas intervenções político-militares radicais da fase inicial da luta política do pós-guerra. Para sossegar o Exército já em ebulição conspiratória, António Maria da Silva, em Fevereiro de 1922, reformou a GNR desmantelando a concentração de forças em Lisboa e dispersando-a pelo país. Foi o princípio da vitória militar do golpismo de direita: o caminho para Lisboa ficava livre, ou quase.
Mas de forma mais permanente e umbilical, a força armada do radicalismo republicano e social, sobretudo do radicalismo lisboeta e da Margem Sul do Tejo, será, como sempre, a Marinha. A Marinha do 5 de Outubro, do 14 de Maio de 1915, dos ataques ao reduto sidonista do Parque no 5 de Dezembro de 1917, do assalto a Monsanto em 1919, da “noite sangrenta” de 19 de Outubro de 1921, a Marinha da revolução reviralhista de 7 de Fevereiro de 1927. Até ela, no 28 de Maio de 1926,trazida pelos homens do P. Radical, alinharia no golpe anti-silvista.
O certo é que o factor decisivo no desenlace do movimento militar de 28 de Maio de 1926, como já antes se referiu, foi a incapacidade da frente política e social das esquerdas agir como tinha prometido fazer em Fevereiro de 1924 e de 1925: como um bloco capaz de resistir política e militarmente à ofensiva subversiva das direitas autoritárias e conservadoras em nome de um programa comum alternativo de resposta à crise. As várias circunstâncias que convocámos tinham dispersado o pólo radical. Atraída em grande parte para o apoio ao golpe (que verberara no ano anterior) em nome do derrube da odiada “ditadura democrática” e do governo dos bonzos silvistas, a esquerda republicana acabou, de alguma forma, e num primeiro momento, por participar na generalizada rendição dos liberais ao advento da ditadura. No movimento operário, a CGT recuou na convocatória da “greve geral” com que ameaçava (e houve sectores dos ferroviários que apoiaram o golpe) e o PCP, cujo II Congresso se encontrava reunido a 28 de Maio de 1926, apelou à “acção comum” contra a “atroz reacção”, sem que daí resultasse, ou se pudesse esperar que resultaria, qualquer efeito prático.
É certo que da mesma forma que a I República, em rigor, não cai no 28 de Maio, também o bloco radical não se extingue definitivamente com o golpe de 1926. Já vimos que aquilo que dele restava activo na sociedade nos partidos, nos sindicatos e nas forças armadas se vai reconstituir para pegar em armas em sucessivos levantamentos revolucionários contra a Ditadura Militar. Mas essas são as heróicas e desesperadas batalhas do fim. Com a sua derrota e a da República encerrava-se um século de liberalismo em Portugal.
O bloco conservador: as direitas antiliberais ganham a hegemonia
Naturalmente, para o combate decisivo, também as heteróclitas direitas da direita portuguesa tendem a agrupar-se num pólo conservador. Em nenhum país europeu o processo de derrube do Estado liberal, fosse por meios mais ou menos pacíficos, pelo golpismo militar ou até pela guerra civil, poude fazer-se sem esse processo de concertação e unificação das direitas sob um comando unificado.
É preciso referir, para o caso português, que essa unidade só se concluirá com sucesso bem depois do “28 de Maio de 1926: a hegemonia da corrente salazarista que fará da dispersão das direitas uma direita homogénea e suficientemente forte para negociar a transmissão/repartição dos poderes do Estado com a direita republicana instalada nos comandos do Exército, será fruto de um processo prolongado e conflitual no seio da Ditadura Militar e só essencialmente concluído entre 1932 e 1934. Mas para derrubar o monopólio silvista do PRP no poder, integralistas, centro católico, a jovem direita tecnocrática do “engenheirismo” (Duarte Pacheco, Araújo Correia, Ezequiel de Campos…) os partidos da direita republicana (P. nacionalista e a sua cisão de 1926, a União Liberal Republicana de Cunha Leal), as associações patronais reunidas na sua frente política, a UIE (União dos Interesses Económicos, 1925), as organizações apartidárias congregadoras das direitas (a Cruzada Nun´Alvares), todas as direitas da direita se põem de acordo em dar operacionalidade política a este objectivo mínimo entregando ao Exército a “missão nacional”, e suprapartidária do “resgate da Nação” através de um golpe militar. O Exército conservador e descontente, pletórico, mal pago, mal armado, mal equipado, semi-saneado, marginalizado pela GNR, haveria de ser o braço armado deste largo consenso – derrubar os “bonzos” – que partindo das direitas lograva em 1926, como vimos, conquistar apoios na esquerda republicana.
A primeira característica a salientar no pólo conservador é precisamente essa: tinham desistido de correr por dentro do sistema. As direitas não liberais, as direitas liberais republicanas e as direitas dos interesses em geral, sobretudo após a crise de 1921 e as dramáticas ocorrências da “noite sangrenta”em Outubro desse ano, apostavam abertamente na subversão do regime, no derrube da situação política pela via de um movimento militar de regeneração da “pátria enferma”. Deve dizer-se em abono da verdade que as direitas dos interesses, salvo conjunturas muito pontuais (como a da artificial euforia económica e financeira do imediato pós-guerra, entre 1919 e 1921) nunca confiaram na República, nas suas instituições, e menos ainda nos seus políticos ou nos seus partidos, incluindo os da direita republicana, apesar dos esforços de todos eles para conquistar os favores dessa representação. Em parte isso devia-se ao facto de a hegemonia do PRP sobre a máquina central do Estado, sem alternância, abrir poucas hipóteses a partidos políticos mais imediatamente representativos dos grandes interesses virem a ter influência directa no sistema político. Na oligarquia sabia-se que evolucionistas, unionistas ou, depois, nacionalistas, jamais poderiam ir muito longe, eram apendiculares e marginais ao centro da política .
Mas havia algo de mais profundo nesse desinteresse. Desde os inícios da crise da monarquia constitucional que as direitas de uma forma geral, e os interesses oligárquicos em particular, procuram soluções de autoridade e de “ordem” fora e até contra os quadros de um sistema parlamentar e liberal que reputam insusceptível de lhes assegurar política e economicamente as condições para a restauração das suas taxas de acumulação fortemente atingidas pelas crises. A sua franca adesão ao sidonismo revela isso mesmo: a escolha de uma ditadura de novo tipo que ele parece premonitoriamente anunciar. É certo que a burguesia portuguesa ainda não fizera a experiência de como chega lá. Desde logo de como manter unida e no poder a fronda social e política viabilizadora da República Nova, esse novo tipo de regime autoritário, nacionalista e corporativo que seduzira Sidónio Pais, as “forças vivas” e as direitas integralistas ou protofascistas a partir de Março de 1918. E, por isso, por esse défice de experiência, o deixa escapar, dividir e derrotar no ambiente do fim da guerra, não conseguindo superar a excepcionalidade da experiência e transformá-la em regime, principalmente após o assassinato de Sidónio.
Agora havia a aprendizagem dessa fundamental experiência doméstica, o sidonismo, mas havia também a ditadura do riverismo em Espanha e, acima de tudo, a partir de 1922, o triunfante e sedutor exemplo do fascismo mussoliniano em Itália. Na realidade, ao chegar o 28 de Maio de 1926, de um ponto de vista da cultura política e intelectual hegemónica à direita, e na sociedade em geral,, a ideologia anti-liberal, anti-parlamentar e anti-socialista, a ideologia do nacionalismo autoritário, passadista e corporativo, o discurso contra “os partidos”, os “políticos” e a “democracia” em suma, o discurso que preparava o terreno ao fascismo, era claramente dominante. O “demo-liberalismo” e a revolução social eram os inimigos a abater para “restaurar a pátria”. À direita, seguramente, mas igualmente em largos sectores da sociedade portuguesa, o discurso anti-liberal instalara-se hegemonicamente na política, na cultura e nas representações em geral. A República estava madura para cair, posto que já perdera a batalha no terreno das ideias dominantes. Era uma questão de tempo.
Essa era outra característica essencial do bloco conservador: além de apostado no golpismo militar, ele encontrava-se já claramente aculturado por uma forte corrente autoritária e anti-liberal larga e longamente semeada por uma intensa e eficaz pedagogia e propaganda de matriz integralista e influência fascizante .
É claro que na fronda das direitas o objectivo mínimo do derrube do silvismo era só o isco para obter um consenso máximo para o golpe militar. Mas a plataforma programática das “forças vivas” e das direitas políticas ia muito mais longe. Era aliás insistentemente reclamada por dirigentes patronais, por tecnocratas “apartidários”, por figuras do mundo político e universitário como Armindo Monteiro ou Oliveira Salazar quando discursavam nos congressos do mundo empresarial, por artigos de imprensa ligada à UIE ou aos integralistas. E, preferencialmente a um programa político, era apresentada como uma solução “técnica” e “patriótica” incontornável. Ou isso ou o abismo.
Poderia resumir-se, em Maio de 1926, numa palavra: “ordem”. Ordem nas finanças, ou seja, equilíbrio orçamental mas pela via do corte das despesas públicas e do aumento das receitas cuja cobrança fiscal não recaísse sobre a riqueza (isto é, os impostos indirectos) por forma a estabilizar o valor da moeda e baratear o crédito; ordem no Estado: reforço dos poderes presidenciais, Governo estável, independente do Parlamento e dotado de força política e económica para intervir regulando a concorrência, protegendo os mercados, apoiando os sectores em crise; finalmente, ordem nas ruas, sinónimo de jugular a agitação operária e as greves, conter e desarmar o movimento operário e sindical e dessa forma reduzir ao mínimo o custo do factor trabalho na recuperação da crise, aí assentando a estratégia da reposição das taxas de lucro.
É claro que mesmo num programa deste tipo, a que a imposição da Ditadura Militar haveria de abrir caminho, subsistia uma ambiguidade essencial que Salazar definiria lapidarmente ao pretender separar as águas no interior da Ditadura, em 28 de Maio de 1930, quando discursa na Sala do Risco . Afinal o que se pretendia? Um liberalismo regenerado pelo republicanismo conservador (aliás bem instalado nos comandos do Exército e da Marinha), ou a superação autoritária e corporativa do liberalismo? Uma República liberal ordeira, ou a “Revolução Nacional”? A velha República saneada e administrada pela direita republicana ou o Estado Novo?
Uma ambiguidade estratégica a que só o longo processo de luta externa (contra o reviralhismo e a resistência do movimento operário) e interna (entre as várias direitas da direita) da Ditadura Militar iria finalmente resolver a favor do salazarismo e do Estado Novo.