Adelaide Cabete: entre a eugénica e a eugenética na defesa da Res publica

Isabel Lousada

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D. ADELAIDE CABETTE
Nasceu em Elvas a 25 de Janeiro de 1867.
Medica pela Escola de Lisboa, onde concluiu brilhantemente o curso em 26 de Julho de 1900,
Desde esta data que vem exercendo a clínica por fórma a conquistar
o respeito e a simpatia de quantos buscam os recursos da sua sciencia. Intelligente e illustrada,
o seu conselho é, na verdade, sempre para apreciar,
o que equivale a dizer que o Partido Republicano só tem motivos de orgulho
em contar a distincta medica no numero dos seus adeptos. Tem colaborado activamente no jornalismo
em assuntos de hygiene e desenvolvimento físico, gozando por tudo a consideração geral.
É casada com Fernandes Cabette, antigo, talentoso e dedicado democrata.

Em 1908 o Álbum Republicano dirigido por J. Ramos e Luís Derouet dava a conhecer a nota biográfica supratranscrita. Tal facto revela a importância que à época esta figura de proa do feminismo português tinha já conquistado pois neste volume somente duas outras mulheres ombreiam consigo, Ana de Castro Osório e Virgínia da Fonseca.
Adelaide de Jesus Damas Brazão nasceu na freguesia de Santa Maria de Alcáçova, concelho de Elvas, a 25 de Janeiro de 1867, durante a monarquia; assistiu e teve parte activa na defesa e na luta pela implantação da República, que viu nascer.
Sofreu com a falta de liberdade no período da ditadura militar e, em 1929, parte para Angola ensaiando um novo começo. Teve uma vida singular e papel relevante aos mais diversos títulos, vindo a morrer em pleno Estado Novo, a 14 de Setembro de 1935, de forma repentina vitimada por um ataque cardíaco, na sua residência de Lisboa.
A sua família conta-se entre as muitas do Alentejo profundo, cujos magros proveitos não permitiam assegurar aos filhos uma educação primária que os excluísse do trabalho diário necessário ao sustento da casa. Contudo, dotada de uma forte personalidade e carisma, o facto de ajudar na apanha da ameixa não a impediu de aprender, nem tão pouco de cantar. Apelidaram-na de mulher forte, como a sua própria compleição nos deixa ver e a obra legada nos faz constatar. Intrépida pioneira republicana, feminista e maçona foi, com Carolina Beatriz Ângelo, das primeiras médicas a exercer a profissão em Lisboa. O seu consultório funcionaria também como ponto de apoio às múltiplas actividades de índole filantrópica, sendo ainda sede do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas (1914-1947), do qual foi a mais destacada presidente. Fruto de uma vida intensa, enriquecida por experiências muito distintas, viajando além fronteiras para representar Portugal em congressos internacionais, desde logo os seus horizontes se ampliaram a um ponto que a origem do seu nascimento, o seu género e a vida que levou na infância, não fariam supor. Só muito tardiamente lhe foi possível sair do analfabetismo, mas a velocidade com que a partir daí conquistou etapas novas e cada vez mais difíceis marcou o seu percurso académico, pedagógico e científico. Amante da liberdade republicana, espelhou os valores apregoados e defendidos pelos círculos republicanos e socialistas em que participou. Como mostra de reconhecimento, e a título póstumo, recebeu a 10 de Junho de 1995 a Medalha e Colar de Grande Oficial da Ordem da Liberdade.
Evocar aspectos da vida e obra de Adelaide Cabete serve o propósito de trazer nova luz, na passagem do centenário da implantação da república, a quem sempre por ela lutou.
Da sua intensa actividade como publicista relevo neste ensaio dois dos textos mais emblemáticos capazes de denunciar o apego da médica republicana aos conceitos advogados pelos seus pares na política e na ciência, um dos quais transcrito e apresentado em apêndice, “Selecção Humana” (Cabete, 1931) e outro de cujo título subtraí as expressões Eugénica e Eugenética (Cabete, 1929). Nas palavras da autora “Entende-se por Eugénica ou Eugénia o estudo dos factores susceptíveis de modificar para bem ou para mal, as qualidades da raça das gerações futuras, tanto física como moralmente”. A eugenética, “estuda as condições mais favoráveis á reprodução para as aplicar com o fim de conservar e melhorar a especie humana. A Eugenética é por assim dizer a profilaxia referente á procreação dos tarados”. (Cabete, 1929:3.)

As batalhas contra a monarquia antes do histórico 5 de Outubro coincidiam frequentemente com disputas contra a religião. Na sua grande maioria, os colaboradores em periódicos da época, pertencentes à facção republicana faziam jus em evidenciar a sua luta contra o domínio da Igreja Católica.
O mesmo acontece com Adelaide Cabete. Cedo, em 1908, é publicado um texto seu em que a dicotomia Bem/Mal nos é apresentada com as seguintes variantes: Igreja – padre – trevas – mal - retrocesso vs Comícios – conferências – republicanos – luz – bem - progresso. Nele se pode ler:

Queridas leitoras, o Mal aqui é o padre, que representa o espirito do retrocesso.
Fugi do Mal, fugi do padre, dos seus sermões, das suas praticas. Fugi da egreja, que é a treva.
O Bem é o progresso, representado por todos os grandes espiritos, que combatem o Mal, e que se chamam Theophilo Braga, Bernardino Machado, Magalhães Lima, Manuel d’Arriaga, Guerra Junqueiro e outros. Segui estes e ensinae vossos filhos a seguil-os. Ide ás suas conferencias, que são a luz, aos seus comicios, onde se prega a verdade. Elles querem para a nossa patria dias mais felizes que os que vão decorrendo. (Cabete, 1908a:23)

As propostas dirigidas às leitoras do almanaque foram certamente aplaudidas pelo seu marido, Manuel Ramos Fernandes Cabete (1849-1916) com quem contraíra matrimónio em 10 de Fevereiro de 1886, e de quem até à morte foi “dedicadissima companheira e brilhante cooperadora na sua obra de vulgarização republicana”. Manuel Cabete, estudou em Coimbra e para além de pertencer à Guarda Fiscal republicano, livre-pensador, membro da Junta Geral do Distrito de Lisboa, foi também sócio do Centro Republicano Democrático, da Associação do Registo Civil e colaborador de O Mundo, que por ocasião da sua morte assim o lembra:

Frequentou os primeiros comícios republicanos que, ha mais de trinta annos se realizaram em Lisboa, nelles era um dos mais entusiastas, Teófilo Braga, Magalhães Lima, Latino Coelho, Elias Garcia e tantos outros caudilhos republicanos tinham por elle a maxima estima e consideração, pois viam em Fernandes Cabette um dos mais ardentes e incansaveis defensores dos ideais republicanos. (O Mundo, 1916:1)

A evidente influência que Fernandes Cabete exerceu na sua formação foi por ela assinalada na entrevista concedida a Clara Campoamor Rodríguez, publicada em 1928 no periódico La Libertad,

le perguntamos qué acontecimiento, persona o enseñanzas tuvo más importancia en su formación.
- Meu marido-nos dice en su dulce habla mientras sonríe a la evocación del muerto, que partió de todo, menos de su recuerdo. (Campoamor, 1928)

Doze anos após a morte do marido continua a afirmá-lo de modo peremptório como podemos ler no texto publicado no jornal madrileno. Constitui este, de resto, uma das fontes coevas que revela a pujança e projecção internacional do seu nome e, mais do que isso, da sua obra:

Consagrada en Portugal como jefe del movimiento feminista moderno, luchando contra las desigualdades legales y sociales de los sexos y aspirando “a hacer de la mujer compañera del hombre, no esclava”, creyendo tan sólo en la superioridad individual e independiente de los sexos, considera el acto fisiológico de la maternidad como la primordial fúncion social de la mujer, cuyas demás actividades han de orientarse y estar de acuerdo com aquélla para evitar conflictos de ordem económico o moral en la família.
Como médico de bien ganada reputación profesional, y “leader” del nuevo desenvolvimiento femenino, conduce con ponderación y habilidad las pretensiones femeninas, y el progreso de la mujer le debo en su país cuanto ha alcanzado. (Campoamor, 1928)

Em Espanha, e ao ser-lhe consagrado estatuto singular, fez questão de sublinhar o alicerce que para si fora Fernandes Cabete, também ele, defensor do feminismo e da igualdade, como Clara Ferreira Alves lembra:

Fernandes Cabete fôra não só o marido estremoso da presidente querida do Conselho, mas, ainda e durante a vida inteira, o mais estrenuo defensor da causa da emancipação da mulher e um apostolo fervoroso da instrução: (Alves, 1916:60)

Cabete é recordado como um homem muito especial, capaz de partilhar as tarefas domésticas de modo a permitir um estudo mais aturado à sua mulher, a quem oferecera como primeiro presente uma gramática, de forma a incentivá-la.

Muitas vezes, andando a lavar, de rastos, o lajedo da grande cozinha, colocava o livro de Anatomia encostado ao balde e ia assim revendo as matérias.
O sargento Cabette, que viu e respeitou em sua mulher a essência superior do seu espírito, não obstante tantos preconceitos que estavam naquele tempo ligados à educação da mulher e ao seu papel social, foi, pode dizer-se, o primeiro professor e o seu maior estímulo. (Silva, 1995)

Da sua própria lavra, e embora editado a título póstumo, é incontornável o texto que Manuel Cabete assina em Dezembro de 1909 intitulado “Feminismo”. Nele indaga:

Mas não serão bastantes os testemunhos de Platão, Stuart Mill, Alexandre Herculano, Teófilo Braga, Bakonine, Paulo de Mantegazza e Ernesto Haeckel para darem sanção á doutrina da igualdade dos dois sexos e da consequente reciprocidade de direitos? (Cabete, 1916:55)

Os termos em que coloca a igualdade de direitos entre homem e mulher sustentam-se nos autores citados e aos quais Adelaide Cabete presta também a devida atenção. De entre eles, saliente-se Teófilo Braga, figura cimeira em Portugal da “política positiva” e mentor da nova Faculdade de Letras de Coimbra aquela em que, embora só bastante mais tarde, viria a ser permitido admitir docentes da entretanto extinta Faculdade de Teologia (por Decreto de 23 de Outubro de 1910). A oposição entre positivistas e anti-positivistas fez-se sentir e extravasou dos círculos científicos para a arena da imprensa escrita. O positivismo triunfante é alavancado pela presença em periódicos da época de artigos com contundentes ataques à Igreja. Ainda que em traços muitos gerais, importa trazer à colação a celeridade com que o ideário republicano nacional absorveu os conceitos positivistas que circulavam além fronteiras. Com particular incidência em trânsitos atlânticos. Os ecos que chegaram do Brasil, intensificam-se depois de aí ter sido proclamada a Republica e a exaltação da vitória cumprir o desiderato de animar os democratas nacionais.
A teoria evolucionista atraiu os intelectuais, cientistas e, naturalmente, muitos dos médicos republicanos. Ainda que, saibamos hoje, o fascínio que a nova corrente exerceu tenha tocado antes da implantação da “República positivista” em 1910, alguns membros das correntes intelectuais católicas. Os nomes revelados por Manuel Fernandes Cabete a par das referências feitas permitem situar o seu pensamento em correntes científicas e filosóficas e escolas de pensamento positivistas diferenciadas:

Não esquecerei, para reforçar mais ainda a opinião, que venho sustentando, da igualdade dos dois sexos, a de um dos cerebros mais potentes dos nossos dias. Quero falar de Ernesto Haeckel, grande naturalista e fervoroso apostolo da teoria da evolução, cuja paternidade pertence a João Lamarck, teoria que em Carlos Darwin teve tão judicioso interprete como digno e proficiente continuador e amplificador. (Cabete, 1916:54)

Alguns dos nomes mais sonantes da classe médica ilustrada foram coetâneos e precisamente mestres de Adelaide Cabete, com os quais partilhou aspirações e convicções. Para só nomear alguns, que pertenciam ao leque de grande craveira da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, refira-se Miguel Bombarda, seu professor de Fisiologia e Histologia; Sabino Coelho, de Patologia Externa; Manuel Alfredo da Costa, docente das cadeiras de Obstetrícia, Doenças das Puérperas e dos Recém-Nascidos; José António Serrano (1851-1904), de Anatomia Descritiva; ou Eduardo Mota, responsável pela Matéria Médica e Terapêutica. Por outro lado, teve ainda oportunidade de privar com diversos sábios em Sociedades de que era também membro. É o caso da Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa, a que pertenciam Sousa Martins (1843-1897) e Manuel Bento de Sousa (1839-1899), que cita frequentemente.
O título escolhido para a dissertação que defende em 26 de Julho de 1900, A protecção ás mulheres gravidas pobres. Como meio de desenvolvimento physico de novas gerações desde logo deixa anunciar o empenho que teve em continuar a tarefa proposta por Alfredo da Costa, no curso de obstetrícia da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, durante a lição de abertura proferida a 14 de Novembro, a que assistira e cujo título adopta parcialmente: A protecção ás mulheres gravidas pobres:

Inauguramos hoje o nosso curso de obstetricia.
N’esta primeira lição não entrarei no estudo de nenhum dos assumptos que constituem o elenco dos capitulos do nosso programa classico. Proponho-me fallar-lhes de questões de interesse mais geral, intimamente relacionadas com a nossa materia e que egualmente são do dominio da hygiene e da economia social. Vou tratar de um problema de assistencia publica que se me impõe como de primeira importancia, o da protecção ás mulheres gravidas pobres, como meio de promover o desenvolvimento fetal e de contribuir para sustar até certo ponto a atrophia e o depauperamento physico de novas gerações. (Costa, 1899:1)

O estudo da médica releva o facto de a debilidade dos filhos ser diametralmente proporcional à deficiente alimentação e, sobretudo, à falta de descanso. Passa muitas vezes despercebida a luta que travou na defesa dos direitos das mulheres e o muito que se lhe deve em batalhas pela licença de maternidade. A relação entre o peso dos nascituros e a taxa de sobrevivência foram variáveis estudadas por ambos, mestre e discípula. Hoje, temos comprovada a relação entre o aumento do peso do feto e o descanso da grávida, sobretudo nas últimas semanas do período de gestação. À época, os registos eram ainda incipientes, mas as conclusões sérias. As condições desfavoráveis que se verificassem na mulher grávida sobretudo no termo da gravidez concorriam para a elevada taxa de mortalidade infantil.
Adelaide Cabete lembra a importância de informar as camadas mais desfavorecidas da população, pugnando por campanhas de esclarecimento levadas às aldeias. Apoiando-se nas alegações de Miguel Bombarda, afirma:

Profligar essas causas será, a nosso vêr, a mais alta manifestação de patriotismo.
Cumpre aos homens de sciencia dar o signal de alarme.
Ás aggremiações scientificas compete promover uma energica propaganda em favor da mulher no estado de gravidez, por amor do ente que alberga nas entranhas.
Será do mais alto alcance para o aperfeiçoamento da nossa raça o derramamento das luzes da sciencia até os mais reconditos logarejos do paiz.
Bom será que chegue a passar entre o povo por verdade de primeira intuição que o ente cuja mãe esteve sujeita a um labor fatigante, soffrendo grandes privações e fortes abalos moraes durante a gestação e mórmente no ultimo periodo d’ella, vem de ordinario á luz, se chega a vingar, valetudinario e enfermiço.
Estando, como está, intimamente ligada a vida fetal á materna, tudo que de qual quer modo affectar esta, irá reflectir-se directamente n’aquella. Assim os traumatismos soffridos pela mãe poderão produzir deformações e mesmo a morte do feto.
Os fortes abalos moraes poderão por sua vez produzir perturbações de ordem psychica no cerebro do feto, como provou n’uma das suas lições de psychiatria o illustre publicista e professor sr. Miguel Bombarda.
Mister será, pois, que as aldeias mais sertanejas se leve a noção de que a força a resistência da prole, depende em grande parte da protecção do que se fizer cercar a mulher no seu ultimo período de gravidez. (Cabete, 1908b: 2)

O mesmo propósito é postulado em A Mulher e a Criança, órgão da Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, em Abril de 1909, com o texto “Necessidade de Repouso nas Mulheres Gravidas”, extraído do livro A protecção ás mulheres gravidas pobres. Nele, Adelaide Cabete expõe ser necessária, senão mesmo imperiosa, a intervenção pública de modo a proteger a mulher durante os últimos três meses de gravidez e do feto, no mesmo período da sua vida intra-uterina. Preconizava a médica que se não fosse possível à mulher grávida ter uma profissão menos fatigante deveria a sociedade, no mínimo, prover para que as mulheres grávidas pobres tivessem repouso durante uma parte da gravidez. Advertência que nos leva a reconhecê-la como pioneira da defesa pela licença de maternidade e assistência pré-natal, na esteira do combate contra a elevada taxa de mortalidade infantil.
A sua luta foi tanto mais imperiosa quanto sabemos que à época os dados que as estatísticas revelavam eram dramáticos e assustadores. Não só no tocante à mortalidade infantil mas também a outros factores dos quais se releva o combate contra a tuberculose.

Ainda há pouco tempo, [1925] em sugestivos artigos e conferências, os nossos ilustres consócios, o prof. Lopo de Carvalho, o Dr. Cassiano Neves, o Dr. Pacheco de Miranda e o Dr. Simões Ferreira, nos deram conta do alastramento do mortífero flagelo – a tuberculose - dizendo-nos que em Portugal morrem por ano milhares de tuberculosos, e que esta doença é, entre todas as causas de morte, a que mais vítimas produz. (Sacadura, 1927:1)

O mesmo sucedia décadas antes como afirma em sessão de 4 de Maio de 1908 na Sociedade de Geografia de Lisboa, o médico naturalista Ardisson Ferreira, responsável por traduções de obras contra o alcoolismo e na defesa do vegetarianismo, ao apresentar publicamente a síntese “Os quatro grandes flagelos do século XX”, a saber, tuberculose, avarigenese, alcoolismo crónico e mortalidade infantil.

Antes de entrar na descripção dos quatro grandes flagellos que, de dia para dia, mais estão abastardando a nossa raça, ameaçando destruil-a, devo dizer que não me atreveria a vir occupar este logar, se não visse que é necessario, que é indispensavel, pôr-vos de sobreaviso, elucidar-vos e – dirijo-me principalmente ás senhoras que me escutam – recrutar soldados leaes, obedientes e conhecedores do seu papel. […]
Em 1904 o numero de individuos mortos pela tuberculose e pela diarrhéa em tenra idade foi 18.353, o que dá egualmente uma percentagem de mais de 17 da totalidade obituaria; a febre tiphoide, o sarampo, etc., produziam só 12.189 obitos.
Quer dizer, em tres annos, a tuberculose e a gastro-enterite roubaram a Portugal 57.391 vidas, o que representa mais da decima parte da natalidade correspondente (535.893)! […]
A higiene, que ensina a conservar e a melhorar a saude: a prophilaxia, […] A sciencia, é certo, presta valiosissimo auxilio, illumina com a sua luz e alenta com as suas descobertas incessaantes […] Para o caso, meus senhores, os generaes são os medicos e os higienistas; o corpo do exercito sois vós.
A tuberculose, a avariose ou infecção especifica, a neisserose ou infecção gonococica, o alcoolismo chronico e a gastro-enterite ou diarrhéa das creanças de tenra idade, vimol-o, são as principaes causas do nosso definhamento e da enorme mortalidade precoce. (Ferreira, 1908: 178-179) [sublinhados nossos]

Desde logo é de relevar o facto de ter havido presenças femininas a assistir à sua Conferência. Interessante seria poder precisar quantas, quais e se eventualmente Adelaide, pois fica a certeza de que muitos dos aspectos explanados ao longo desta intervenção se revelariam na senda dos defendidos por ela, ao longo da sua vida.
De tudo o que foi exposto resulta clara a dramaticidade dos números implicando um forte empenho científico, político e social de modo a contrariar o definhamento e promover a renovação e fortalecimento das futuras gerações. Aliás, fora este mesmo conferencista o autor do texto editado no ano anterior, 1907, o Guia das mães, onde preconizara “Pugnar pela amamentação materna é defender a saúde da creança e a moralidade da família”. O mesmo princípio será justamente advogado pela médica Adelaide Cabete, quer em teses que leva a congressos quer ainda nos artigos que edita, nomeadamente nos periódicos A República, O Rebate e no suplemento de A Batalha.
Ardisson Ferreira critica a amamentação mercenária, suportando o seu juízo mediante uma retrospectiva, colhendo a máxima que do século XVIII bebera de Rousseau, citando um trecho da obra Émile em que se patenteia a revolta contra as amas mercenárias, impelindo as mães a amamentarem os seus filhos: “Point de mere, point d’enfant;! […] Voulez-vous rendre chacun à ses premiers devoirs, commencez par les meres;: vous serez étonnés des changemens que vous produirez!…( Rousseau, 1971: 17-18)
Pese embora o espaço de tempo que medeia entre a conferência oferecida pelo naturista (1908) e o texto de Cabete “Selecção Humana” (1931), apresentado em apêndice, noto que de permeio ela assinou textos cujos títulos são inequívocos no combate para o qual fora convocada na qualidade de médica como “General”. Lembro, em particular, a coluna “A tribuna feminina”. Nela serão divulgados em 1908 – “A amamentação maternal” (17 e 18 Agosto), “Cuidados que deve haver na amamentação maternal”, ou em O Rebate, “Qual deverá ser o tempo a prescrever para o repouso da mulher grávida” (1925), “As mães devem criar os filhos, por motivo de ordem higiénica e moral” (23 de Nov. 1927), “amamentação mercenária” (25 Fev. 1928), entre outros.
Adelaide Cabete explicita, o que não deixa de ser sintomático, ainda em 1908, os procedimentos que em seu entender deveriam ser assegurados para garantir a renovação geracional. Pelo que, adianta:

Se a sociedade quizer preparar uma raça de cidadãos vigorosos, aos quaes, volvidos vinte annos, possa com afoiteza confiar a guarda do que ella tem de mais caro, do torrão sagrado da patria, terá de principiar por proteger os futuros cidadãos na sua vida intra-uterina e principio da extra-uterina, proporcionando ás mulheres gravidas pobres os meios de conforto ao seu estado; […]
Lancem-se em terreno arido e safaro as mais belas sementes e com todas as condições para uma boa germinação, e ver se ha que, apesar d’esta favoravel condição, a planta urgirá enfezada e rachitica, e, vegetando difficilmente, ir-se-ha por fim definhando e acabará por morrer á mingua de seiva que lhe favoreça o desenvolvimento. (Cabete, 1908b)

Esse exemplo retirado das plantas e aplicado ao homem será mais tarde, em 1931, corporizado no texto “Selecção Humana”, inicialmente defendido na tese apresentada ao 2.º Congresso Abolicionista, em 1929.
Mas a sua leitura vai mais longe, como refere logo em Agosto de 1908: prescrever a amamentação maternal não é suficiente, importa sobretudo regulá-la e orientá-la de modo a não transformar o melhor dos alimentos no pior dos resultados.
Pelo que pormenorizadamente se debruça em aspectos que visam minorar a deficiente nutrição dos recém-nascidos, não se coibindo em alertar contra hábitos que podem ser nefastos durante o aleitamento. Estes aspectos que publicita em conferências e edita são constantemente reiterados ao longo da sua carreira. Encontramo-los de novo em Alma Feminina, em 1925:

Não terminarei este artigo sem afirmar de novo que o alcool é o mais nocivo de todos os venenos ingeríveis, e que, se nos homens ele faz mais estrago do que os tres flagelos reunidos, fome, peste e guerra, como dizia o grande Gladstone, pode ajuizar-se bem que de males ele não produzirá, ao ir, tomado pela mãe, envenenar a alimentação do filho! (Cabete, 1925:22)

A tese apresentada ao 2.º Congresso Feminista e da Educação revela à saciedade a preocupação prevalecente em 1928, uma vez que desde 1913 defendera no Congresso Internacional de Ocupações Domésticas, em Gand, na Bélgica, a vantagem de implementar o estudo da puericultura na escola infantil, não como mero exercício de recreação mas, sobretudo, pedagógico. Defende pois o ensino de puericultura precocemente na infância reforçando a ideia de que dos 5 aos 7 anos as crianças retêm: “as noções que aprenderam com as suas bonecas na única escola que frequentaram e, assim, já concorrem, em grande parte, para diminuir a mortalidade infantil para o que tanto contribue a ignorancia de muitas mães.” O que lhe permite de seguida concluir: “1.ª Não basta ser mãe é preciso sabê-lo ser. 2.ª Quanto menor é a ignorancia das mães, menor é a mortalidade infantil. 3.ª A mortalidade infantil diminue com o estudo da puericultura. 4.ª O estudo da puericultura deve principiar a fazer-se na escola infantil.” (Cabete, 1928:13) Por quanto no texto Eugénica e Eugenética define:

Entende-se por Eugénica ou Eugénia o estudo dos factores suscetíveis de modificar para bem ou para mal, as qualidades da raça das gerações futuras, tanto física como moralmente.
Por esta definição, devida a Francis Galton que a empregou pela primeira vez em 1883, se vê a complexidade que encerra a palavra Eugenica.[…]
O distintissimo operador Dr. Sabino Coelho numa sábia comunicação que fez em 17 de Março de 1928, na Sociedade das Sciências Médicas de Lisboa, relatou o facto de ter operado duas irmãs uma de 13 anos e outra de 17, de cancro no seio, apesar de tão pouca idade e com o espanto de várias notabilidades sciêntíficas, Dr. Sousa Martins e Dr. Manuel Bento de Sousa. […]
Já o Dr. Sousa Martins nos dizia que os filhos, cujos pais tinham as mesmas doenças, nasciam, não só com essas doenças somadas, mas multiplicadas.
E’ preciso completar (em vista dos dois exemplos acima citados) esta frase dizendo que essas doenças veem multiplicadas e antecipadas. (Cabete, 1929:3:6:7)

Relevamos o facto de as posições por si defendidas terem invariavelmente um cunho pedagógico fundamentado e indissociável do conhecimento prático observado, o que certamente permitirá vislumbrar em Adelaide Cabete algum pioneirismo na abordagem sociológica a estas matérias. Da renovação das futuras gerações beneficiaria toda a sociedade, se a informação, a puericultura, as campanhas de prevenção e a profilaxia face às doenças venéreas, à tuberculose, a denúncia de maus hábitos, a publicitação por todos os meios e através dos métodos mais adequados, no combate aos vícios nefastos como jogo, alcoolismo, tabagismo. Dessa forma indo de encontro ao que Ardisson Ferreira denominara em 1908, “Os quatro flagelos do século XX” e contra os quais Cabete se batera, pelo que mais do que General terá sido a embaixadora junto aos desfavorecidos.
Os conhecimentos que associou à prática clínica foram potenciados pelas leituras de textos que fez questão de divulgar, mostrando em que correntes filia o seu pensamento. Pode assim revelar-se o leque de leituras e os autores nacionais e estrangeiros que segue mais de perto. Para além dos referidos, deixei propositadamente para últimos os que a aproximam da Teoria da Evolução. Cita Charles Richet (1850-1935), prémio Nobel em Fisiologia, La sélection humaine (1923) que já em adiantada idade com 85 anos escrevia Les femmes immortelles, uma biografia de mulheres ilustrada; Darwin, e a obra The descent of man and Selection in Relation to Sex (1871 1st ed.), Sir Francis Galton (1822-1911), e o pioneiro Adolphe Pinard (1844-1934), Alfred Russell e ainda Cesare Lombroso (1835-1909).
E, se foi com as seguintes palavras que terminou a sua conferência no Liceu Salvador Correia, em Luanda:

Este assunto é tão vasto na sua realização como grandioso nos seus resultados. Não basta a acção do Estado é a particular e o auxílio das senhoras que são sempre as almas redentoras para tudo que é bom e generoso. É preciso encetar este movimento verdadeiramente nacional? Sim, e porquê?
Para não vermos morrer a nossa raça que se definha a olhos vistos, verdadeira raça de herois que assombrou o mundo inteiro. (Cabete, 1931:28)

Vejamos como postulara a sua tese ante o congresso abolicionista, antes de partir para o continente africano:

Chegando uma criança á idade adulta e tendo em todas as idades até ao casamento, seguido os preceitos da Eugénica tanto físicos como morais, deve por certo chegar a ser um indivíduo se não ideal, pelo menos relativamente normal.
E nesta circunstância em vez da proibição dum acto natural e moralisador como é o casamento, em vez da obrigação do atestado médico, parecia-me mais prático a obrigação de apresentarem no acto do casamento, uma certidão duns breves conhecimentos da Eugenética, pois que até os próprios analfabetos os aprenderiam com facilidade, nesta idade. […] Desta forma já ambos os nobentes sabiam o crime de lesa-humanidade em que incorriam, ligando-se a certos tarados antes actuariam com perfeito conhecimento de causa para o bem da humanidade.
E desta maneira tambem se escusava de aplicar a lei iníqua da castração ainda mais cruel e deshumana, visto que faz perder para sempre a integridade sexual do indivíduo.
[…], aplique-mos antes principios mais brandos e mais consentaneos com a marcha da civilisação, ainda que nós não tenhamos a felicidade de gosar os seus resultados. Não sejamos igoístas.
Sejamos antes patriotas e humanitarios até além da morte, se êste paradoxo se pode admitir. (Cabete, 1929:10:11)

Por quanto foi dito resta lembrar a conciliação entre a moral e o progresso - divisas políticas Contianas partilhadas por Adelaide e Manuel Cabete, e nas quais ao longo de suas vidas empenharam o seu ânimo, até além da morte … se este paradoxo se pudesse admitir, a qualquer dos dois livre-pensadores.

Apêndice
Transcrição integral respeitando a grafia do original, Alma Feminina, “Selecção Humana”, Ano XVII, n.º 3-4, Março e Abril de 1931, p. 1; n.º 5-6, Maio e Junho de 1931, p. 20-22; n.ºs 7-8, Julho e Agosto 1931, p. 27-28.

Selecção Humana

Conferência realizada em Loanda no liceu Salvador Correia, pela ilustre Presidente do Conselho Nacional das Mulheres Portuguêsas a sr.ª Dr.ª Adelaide Cabette

Acedendo ao amável convite que me foi feito eu venho realizar uma palestra subordinada ao têma scientífico de: Selecção Humana.
As simples e despretenciosas palavras que vou proferir têm tôda a oportunidade porque oportuno é sempre mostrar o desprêso quási criminoso com que a maioria dos indivíduos se julgam aptos para serem pais.
Nota-se por tôda a parte do mundo o desejo de selecionar animais e plantas.
Assim, por exemplo, entre nós para não irmos mais longe, as condelárias militares que selecionam com um cuidado tal, que são elas que fornecem os animais reprodutores aos criadores de gado cavalar no nosso país e inscritos no Ministério da Guerra, onde há repartições especiais de serviço de remonta. Isto, vem a propósito, para demonstrar o interesse e justificado, que existe entre nós para selecionar êstes animais.
Temos também as exposições de gado, vacum onde os expositores se apresentam em grande número com animais, uns para produzirem leite, outros ainda para matar, e ainda indiferentemente para tourear. Ainda há pouco, num jornal de Loanda se publicou um anúncio da Estação Zootécnica da Humpata para venda de reprodutores selecionados, mas só a criadores de gado vacum.
Por isto se vê tambem quão grande é o interesse do Estado em ter raças apuradas.
Temos os cunicultores, criadores de coelhos que preparam raças diferentes destes animais conforme as aplicações a que se destinam.
Assim a raça gigante, para produção de carne, outras especies são preparadas para dar uma pele tal que depois de um certo amanho as fazem emitar as peles mais ricas a ponto de nós as mulheres, termos necessidade de nos acautelar quando compramos algum abafo.
E Cães?
Com que esmero ele prepara algumas raças, como as de São Bernardo, Lobo da Alçacia, Serra da Estrela, Lúlus, etc!
Quanto a galináceos todos sabem quantas pessoas têm a mania de selecionar raças dêstes animais umas para produzirem muitos ovos como os Leghorns, outras para boa carne como as Orpintons.
Os nossos cavadores, ignorantes, até sabem que espécie de alimentação lhe devemos dar para obter ovos com esta ou aquela qualidade. Quanto ás exposições columbofilias tem tomado tal incremento entre nós que o Govêrno Português achou conveniente legislar há poucos mêses sôbre êste assunto regulamentando as Sociedades de pombos correios que estavam criando por todo o país. E por último temos as exposições pomíferas e de flores que ultimamente têm sido de um tal deslumbramento que basta dizer-se que até o Estado as tem auxiliado indo o seu chefe inaugurá-las.
O Teatro Nacional, o Ministério da Instrução e as salas da Câmara Municipal têm sido cedidas para êste fim. O comerciante tem cedido as suas montras para nelas sêrem expostos belos exemplares de rosas, cravos, crisântemos a par de admiráveis exemplares de melancias, abóboras, maçãs, etc., causando o espanto do público pela sua grandeza. Nestas exposições é interessante ver-se diferentes categorias dos expositores, dêsde o titular ao modesto jardineiro. Por aqui se vê que todas as categorias sociais se interessam pela seleção das plantas, como se viu há o interesse para a seleção dos animais.
Todo êste interesse e gôsto especial que tanta gente manifesta por estas seleções de aperfeiçoamento fazem com que os animais e plantas venham ou nasçam com fôrça e vigôr para resistirem ás intempéries da vida animal ou vegetal que vão fruir.
Faz-se o mesmo para selecionar a raça humana?
Tem-se os mesmos cuidados e desvelos para que as crianças nasçam em melhores condições?
Vamos ver como essa selecção se costuma fazer entre nós. Devo dizer que vou referir-me especialmente ás classes superiores, isto é, principalmente àqueles que honraram este acto com a sua presença, e que fazem a honra de me escutare.
Principiaremos pelo sexo masculino.
O futuro pai logo que chega aos 10 ou 12 anos princípia a fumar e portanto a intoxicar o organismo com a nicotina, ácido prússico e os compostos da pyridina que são as principais toxinas do tabaco. Dir-me-hão que nessa idade a quantidade é tão pequena que não pode ser nociva, mas o que não vai em quantidade vai na qualidade de tabaco, pois que como é ás escondidas e com pouco dinheiro adquirem e fumam o mais ordinário e ás vêses até apanhado do chão o que lhes acarreta novas infeções e assim o seu débil organismo quando chega aos 20 anos está completamente intoxicado e com o tabagismo suficiente para transmitir os seus maus resultados aos filhos.
Num estudo feito por um médico francês num hospital de crianças verificou que as que nasciam com sintomas de nervosismo e de myocardite eram todas filhas de pais fumadores.
Os primeiros sintomas do tabagismo são as palpitações, as faltas de memória, principalmente do nome das coisas e das pessoas e aparecem dos 18 aos 20 anos, e ás vezes tão intensas que chegam a fazer perder os cursos aos rapazes.
Não falemos ainda das outras doenças que aparecem mais tarde como são as bronquites, miocardites, doenças intestinais, congestões, etc.
Uma outra doença, o alcoolismo, é adquirida pelo futuro pai pelos 15 anos, é nesta idade que começa já tomando os seus calices das mais variadas bebidas alcoolicas. Em casa com os pais toma á mesma ás refeições, os diversos vinhos e licores para o assado, cosidos, dôces etc. Mas não fica só por aqui. O menino como anda já no Liceu ou noutra qualquer escola, no caminho vai com os colegas às leitarias e pastelarias a bebericar as diversas especialidades de bebidas, no inverno para aquecer e no verão para reanimare do esgotamento que o calor lhe produz e, assim o futuro pai adquirindo o alcoolismo sem dar por isso, julga com uma ignorancia crassa que o alcoolico é só o que se embriaga, e desta maneira transmite depois aos filhos esta terrivel doença de uma maneira assustadora. O filho do alcoolico nasce já um doente incoravel para todo o sempre e um irresponsavel pelos actos que pratica.
Quanto á sífilis, se aos 25 anos o homem a não possui tem outras de não menor gravidade para transmitir aos seus.
E como estas três doenças, tabagismo, alcoolismo e sifilis se adquirem no vigor da vida e quasi sempre ocasionadas por pandegas, noites perdidas, bailes, e as vezes até com fraca alimentação vem juntar-se a este já triste sudario, uma quarta doença cujos efeitos na prole são lastimosos a tuberculose e quando não ha esta doença ha um depauperamento geral que se transmite á geração .
E apesar disto tudo, quando a gente diz a algum rapaz de 25 anos que deve casar, é vulgar dizer-nos com toda a desfaçatez que ainda é muito cedo, pois ainda não gosou da vida tudo quanto tem a gosar, o que quer dizer que só se considera apto para constituir família quando tiver desbaratado todas as energias da mocidade.
É assim que os homens fazem a seleção dos filhos!!! Mas para acharem uma desculpa para a sua vida libertina descobriram uma teoria que seria engraçada se não tivesse muito de iguista e de acomodatícia. Dizem eles que todo o homem tem que gosar o maximo da vida e aquele que a não gosar em novo, terá de a gosar em velho, portanto e muito melhor para a esposa que o marido case com aquela fase da vida já passada e obrigatoria segundo eles.
Para reforçarem a sua teoria citam até nomes de vários pensadores.
Pode ser que sejam bons maridos nestas condições, mas são pessimos pais.
Mas se é a sina que tem que cumprir, o que eu contesto, antes a cumprissem depois dos filhos estarem nascidos, porque nesta altura já os não prejudicariam, e as esposas, eternas vitimas, lhes perdoariam, de lagrimas nos olhos, as extemperaneas leviandades que não vieram estragar o físico dos seus filhos, por quem elas dariam a propria vida.
E se fizermos uma mensão particular ao distinto auditório que me está dando a honra de me escutar a todos os colonos Portugueses que, como se sabe, já é uma parte importantissima da raça portuguesa, ainda são vitimas de uma quinta doença – o impaludismo – cujas consequencias para a prole são bem manifestas.
Uns veem para as colónias solteiros a fazerem um estadio de dois ou três anos a angariarem os bens suficientes para constituirem o seu lar mas esquecem que veem buscar tambem um mau estigma para os futuros filhos; outros ainda, os casados, que deixam na Metropole as esposas, e quem sabe com que dor de alma, depois de um trabalho insano, de uma luta feroz, contra os intemperies da vida e crueza do clima, sem o carinho do lar e sem o tratamento necessario para a terrivel doença que a pouco e pouco os vai dominando, regressando depauperados para refrescar o sangue. Refrescar o sangue !!!
Como esta fraze é heróica e confrangedora para quem como eu ainda não está muito habituada a ouvi-la.
Na Metropole estão realmente algum tempo a refrescar o sangue, mas quando regressam a suportar novamente os malefícios do clima deixam um filho gerado ou nascido nestas pessimas condições.
Como nasce esta creança?
Eu poderia dize-lo com a prática dos meus 30 anos de vida clinica e pelo estado dos clientes que passaram pelo meu consultorio.
Em conclusão, podemos afirmar que nenhum rapaz quando casa vai completamente livre de todas estas doenças.
Se no seu enxoval não vão estas cinco prendas leva pelo menos a maioria.
Assim se preparam os futuros pais!!!
Vamos agora falar da futura mãe.
O sexo feminino tem tambem culpas no cartorio e estas mais devídas ao luxo do que ás doenças que acabamos de inumerar com referencia ao homem, contudo uma há que infilizmente algumas mulheres adquirem, refiro-me ao tabagismo.
O tabagismo esta-se desenvolvendo infelizmente na lata roda feminina de uma maneira assustadora.
Vem a proposito dizer que muitas destas senhoras que fumam se manifestam contrárias ao femenismo porque não querem masculinisar-se esquecendo-se que o gesto de puxar por um cigarro é tudo quanto ha de menos feminil.
Mas é pelo luxo que a mulher mais peça como futura mãe.
O espartilho, apesar de já estar posto de parte fez tais estragos que ainda existem nos organismos.
Só quem viu os estragos em cadaveres como me aconteceu no meu estudo de anatomia póde avaliar a sua nefasta acção nos órgãos principais à vida daquela que a outros tem de dar vida.
O seu regresso, segundo consta, está para breve, devemos acautelar-nos contra a sua nova invasão para não termos de observar outra vez as costelas assentos nos pulmões e as barbas do espartilho vincadas no fígado e que acima nos referimos.
Se estamos livres do espartilho, por enquanto, não acontece o mesmo com o salto alto. Os graves prejuízos que tais andilhas causas são lastimaveis. A mulher para se equilibrar modifica por completo a sua posição, enclinando-se para traz, visto que começa a andar nos bicos dos pés.
As curvaturas da coluna vertebral deslocam a posição dos órgãos principais, sobretudo o utero, que é o que mais nos interessa neste caso.
A criança desenvolvida num utero deslocado da sua posição normal não póde ter normalidade no seu desenvolvimento.
É vulgar tambem muitas meninas para se defenderem do tecido adiposo que incomoda o seu gosto estético começarem a beber vinagre, outras não se alimentando o suficiente e isto tudo para emagrecerem.
Enfraquecem o organismo tornando-se fracas mães.
Conheço casos fatais.
Pelo que acabamos de enumerar com estas despretenciosas palavras vê-se a maneira quasi criminosa como se preparam os seres humanos para serem progenitores, maneira bem deficiente, digo diferente, como se comportam para a selecção de animais e plantas, como já vimos.
Devemos permitir que este estudo de coisas continue?
Não.
Urge um pronto remédio a uma tão grande calamidade.
Todos os povos civilizados estão trabalhando para este fim, isto é não só tratando da “Eugénica” (preparação da criança desde que ela nasce) mas tambem da “Eugenética” (preparação da crianças muito antes de ela nascer, tornando os pais sádios para que os filhos sejam robustos).
O estudo da Eugénica consta de maternidades, créches, lactarios, gotas de leite, enfermeiras, visitadores, ensinamento de puericultura nas escolas e ás mãis.
Tudo isto se está fazendo já em Lisboa, e diga-se a verdade, em Loanda já se faz uma tentativa devido aos esforços do meu colega Damas Móra. Quanto á Eugenética consta de, por ensinamentos, incutir aos futuros pais o horror ás taras de que falamos por conferencias, projecções animatograficas, distribuição gratuíta de folhetos, cromos em todas as escolas, oficinas e quarteis, etc, cartazes anunciadores do perigo, o estudo da puericultura etc., etc.
Coube á classe do professorado a honra de introduzir no nosso país o estudo da Eugénica e isto pela necessidade em que se via de preparar um físico melhor ás crianças que lhe apresentavam.
Eis a razão porque devemos auxiliar os banhos, os jogos escolares e todas as manifestações de assistência infantil visto que as crianças aos 7 anos, quando lhes vão parar ás mãos, cheias de taras como a tuberculose, a sifilis ou o alcoolismo.
Que trabalho insano que estes obreiros da instrução teem de dispender para amoldarem aos pequeninos cerebros doentes para os tornarem aptos a assimilarem as doutrinas que é mister ensinar-lhes.
Não há duvida nenhuma que ás vezes apresentam a exame verdadeiros prodigios mas estes mesmos ao menor esforço ficam extenuados e não progridem como devia ser e conforme a sua inteligencia manifestada, pois o seu físico não está a par do seu intelecto. E se isto se dá é porque a criança portuguêsa é inteligente como inteligente é a nossa raça e pela incompetencia contestavel do nosso professorado.
Ve-se por tudo isto que é preciso entre nós selecionar a raça humana como se está fazendo em todos os paizes civilizados, não copiando todos os processos porque nem todos se adaptam á nossa índole, mas simplesmente por insinamentos e propaganda da Eugénica e da Eugenética.
Este assunto é tão vasto na sua realização como grandioso nos seus resultados. Não basta a acção do Estado é a particular e o auxílio das senhoras que são sempre as almas redentoras para tudo que é bom e generoso. E’ preciso encetar este movimento verdadeiramente nacional? Sim, e porquê?
Para não vermos morrer a nossa raça que se definha a olhos vistos, verdadeira raça de herois que assombrou o mundo inteiro.
Tenho dito.


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