António Sardinha Republicano

António Ventura

Em 1944, Alfredo Pimenta dava à estampa mais um dos seus opúsculos polémicos: A propósito de António Sardinha . Era um triplo ajuste de contas. Com Guilherme Martínez Auler, Catedrático de História do Brasil na Faculdade de Filosofia e Letras Manuel da Nóbrega, que acabara de publicar um livro sobre António Sardinha, reproduzindo a conferência que proferira no Gabinete Português de Leitura do Recife ; com António Sardinha, a quem nunca perdoara algumas palavras críticas que sempre interpretou como insultos; e com os admiradores e seguidores do autor de O Valor da Raça, que mantinham vivo o culto do pensador nacionalista prematuramente desaparecido. Poucos críticos de Sardinha igualaram Alfredo Pimenta na violência das suas palavras, reduzindo a cinzas, de uma penada, impiedosamente, toda obra do ideólogo do Integralismo Lusitano, que não passaria de um mito mantido por amigos incondicionais, movidos mais pelo sentimento que pela razão. Para Alfredo Pimenta, António Sardinha não passou de um equívoco, ou melhor, de um somatório de equívocos. Ao analisar as diversas vertentes da actividade intelectual e política do escritor monfortense, mas também a sua personalidade, Pimenta concluía que ele foi um diletante que casou rico e levou uma vida fácil, esbanjando a fortuna da mulher. Como poeta teria sido menor, como historiador não passou de leituras em segunda mão e, como político, os pecados e pecadilhos não tinham fim… Mesmo considerando o campo nacionalista e monárquico, Alfredo Pimenta aponta uma falange de intelectuais que teriam sido superiores ao tão incensado autor de Quando as Nascentes Despertam: Caetano Beirão, João Ameal, Fernando Campos, Ernesto Gonçalves, Guilherme de Faria, Gastão de Melo Matos, Delfim Maia, Luís Chaves, Alberto de Monsaraz, Hipólito Raposo, Henrique Trindade Coelho… Todos eles, nas respectivas áreas – na Poesia, na Filosofia, na História – teriam suplantado aquele que muitos consideravam Mestre.
Mas, sendo assim, a que se devia o culto que lhe dedicavam os seus admiradores? Apenas à sua morte extemporânea. Com uma indisfarçada crueldade, Pimenta sublinhava: «morreu cedo – para a sua família e para os seus amigos. Morreu, porém, a tempo, para o seu nome» .
Como não podia deixar de ser, os amigos e admiradores de António Sardinha saíram em defesa da sua memória e da sua obra, publicando uma folha volante, com a chancela das Edições Gama, insurgindo-se contra o «desprezível folheto em que se pretende deprimir o valor das obras de António Sardinha e ultrajar a alta dignidade da sua memória», considerando que se tratava de uma «triste anormalidade que subtrai o autor a qualquer domínio do senso moral». Datado de Março de 1944, o documento era assinado por 36 figuras, umas mais conhecidas que outras, incluindo velhos e novos integralistas como Luís de Almeida Braga, Leão Ramos Ascensão, Alberto Monsaraz, José Pequito Rebelo, Hipólito Raposo, Afonso Lopes Vieira, Manuel Múrias, Mário Beirão, Rodrigues Cavalheiro, Manuel de Bettencourt e Galvão, Ivo Cruz, Luís Chaves, Luís Pastor de Macedo, Vieira de Almeida, Fernando Amado e Dutra Faria.
Alfredo Pimenta treplicou de imediato com um panfleto igualmente violento, lapidando os seus críticos a quem chamou «irrequietos gamos», «maçonaria de Entrudo», «tropa fandanga» e outros mimos .
Um dos argumentos brandidos por Alfredo Pimenta no primeiro opúsculo, foi o da inconstância política de António Sardinha, embora reconhecesse que ele próprio também não fosse um modelo de coerência: «Fomos, eu e António Sardinha, contemporâneos em Coimbra – eu frequentava o quarto ano de Direito, em 1906-1907, quando ele se matriculou no primeiro ano da mesma Faculdade. Fazíamos ambos parte da Academia republicana; assinámos ambos o insolente Manifesto de 1908, que num país em que as instituições não estivessem podres de todo, teria acarretado para os seus signatários, pelo menos, a expulsão da Universidade. Fomos grevistas – na célebre greve de 1907, com a pequena diferença de que eu fiquei fiel à palavra dada, sacrificando tudo, e António Sardinha faltou a ela – furou a greve» .
É sobejamente conhecido o facto de António Sardinha, figura maior do Integralismo Lusitano e uma das referências fundamentais do pensamento contra-revolucionário português ter perfilhado, inicialmente, ideias republicanas : «Il s’éduqua sur les bancs de l’école laïque et libérale avec les disciples de Teófilo Braga» .
Essa militância é referida por amigos, por inimigos e por ele próprio. Carlos Ferrão, ao aludir ao Regicídio, escreveu que «entre os que se destacaram na exaltação dos autores do atentado figuravam futuros doutrinadores nacionalistas e tradicionalistas como António Sardinha e Alfredo Pimenta», e que o primeiro também foi um dos signatários do manifesto de estudantes republicanos criticando o que os seus colegas monárquicos dirigiram ao novo monarca . Eurico Gama, elvense e admirador de Sardinha, também refere essa militância republicana juvenil, curiosamente, nas páginas desta mesma revista – Gil Vicente.
Hipólito Raposo explica a posição do seu companheiro: «o seu entusiasmo republicano era, portanto, superficial, e representava mais um protesto contra a corrupção dos costumes políticos da Monarquia do que uma convicção intelectual. Ser republicano afigurava-se-lhe naquele tempo a atitude mais digna para um bom português, razão bastante para que só mereça louvor a sua sinceridade» .
António Sardinha nunca rejeitou o seu republicanismo inicial – que terá sido mais uma atitude ética e de protesto - integrando-o num processo racional e coerente de evolução que culminou com a conversão à Monarquia e ao ideal integralista. Mas o passado - tal como sucedeu, num sentido totalmente oposto, porque o percurso foi inverso, com António Sérgio – era periodicamente utilizado como arma de arremesso por adversários e por correligionários mais críticos. Mais do que ter sido republicano, acusavam-no de se ter regozijado com o Regicídio.

António Sardinha e o Regicídio
Sousa e Costa , num artigo publicado em 1917 no diário O Primeiro de Janeiro, comentava a violência de alguns escritos de António Sardinha, em que insinuava que Guerra Junqueiro devia ser deitado à fogueira como nos tempos da Inquisição . Segundo ele, em António Sardinha coexistiam duas entidades perfeitamente distintas – o poeta e o político: «Quando o político fala, o poeta treme, encolhe-se e esconde-se. Mas, na hora torva em que o político descesse do campo incruento das divagações platónicas ao estrado severo das execuções positivas, de facho aceso em punho, o poeta, brandindo a clava amorável do Tronco Reverdecido, obrigá-lo-ia a retroceder» . A intransigência de Sardinha, a forma intolerante como expunha as suas ideias, dando a impressão que não hesitaria um momento que fosse em utilizar todos os meios, incluindo a força, para as impor, não passaria, afinal, do plano das intenções, porque a sua sensibilidade de poeta o impedir de as concretizar. E Sousa Costa exemplificava com o seu conhecimento pessoal da António Sardinha, trazendo à colação o período republicano do Poeta, que fora seu colega em Coimbra, e com quem convivera intimamente durante três anos: «Vi-o no exaltamento partidário oposto ao de hoje. Vi-o cavaleiro da Democracia e cruzado dos Direitos do Homem. E vi-o e ouvi-o na noite da tragédia do Terreiro do Paço – subindo as escadas do meu terceiro andar, na Rua do Borralho, clamando, a altos brados:
- Alberto! Chacinaram a família real!
- A família real? Toda a família real? – perguntei, e comigo alguém que vibrou a meu lado, numa viva comoção maternal.
- Toda! O Rei! A Rainha! Os Príncipes! – gritava, na explosão de todo o seu entusiasmo político em efervescência. E o Príncipe D. Luís mataram-no ao desfechar uma pistola sobre os que disparavam contra o pai!
Fora esta, realmente, a primeira versão do regicídio, a que antes de outras correra em Coimbra.
A mesma pessoa, de brandos instintos maternais, transida de horror, observou:
- Mataram-no… porque defendeu o pai!
- Bem feito! Pois se puxou por uma pistola!…
Calámo-nos. António Sardinha, de capa no braço, os olhos fulgurantes, passeava e continuava a gritar – e quem o ouvisse, não o conhecendo, supô-lo-ia capaz de empunhar, de facto a clavina do Buiça e de arcabuzar, na verdade, os monárquicos sobreviventes» .
Dias depois, Sousa Costa foi à caça e matou uma perdiz. António Sardinha, perante a visão da ave, reagiu com repulsa: «o jacobino exaltado da noite de 1 de Fevereiro, na presença do cadáver sem culpa, contorceu-se, censurou, revoltado:
- Francamente! Não é próprio de ti! Que mal te fez essa perdiz!» .
Este episódio provava, segundo o autor do artigo, que António Sardinha, «no dia em que tivesse de expulsar os judeus a pontapés, e não a palavras, no dia em que tivesse de queimar Junqueiro, não em frases de jornal, mas sobre o estrado da Inquisição, tornar-se-ia mais humano do que você, e tão amorável como S. Francisco de Assis…»
António Sardinha respondeu a Sousa Costa num texto intitulado «O meu Republicanismo» , assumindo que a sua adesão ao ideal republicano fora sempre de ordem intelectual e que «o municipalismo me levou à república, o municipalismo me trouxe à verdade monárquica». Refere ainda que, «a um mês do 5 de Outubro, sustentei sozinho uma campanha municipalista em defesa dos interesses da minha terra, que me valeu alguns perigos e foi a primeira realidade a instruir-me em toda a força moral, quando Couceiro padecia em Chaves o desalento da traição e da derrota » . Essa campanha, que não especifica, surge como um elemento decisivo na mudança de campo: «não hesitei dando um passo que reputo de heróico, porque nesse passo ia contido o sacrifício de todo o meu futuro» .
A conversão de António Sardinha à monarquia foi um processo iniciado nos primeiros meses de 1911 e está muito bem documentado na correspondência para sua noiva – depois mulher – Ana Júlia Nunes da Silva . Mas, para além de toda uma reflexão intelectual, devem ter ocorrido outros factos e surgido outras razões que justificaram a mudança.
Tentaremos esclarecer esses factos, recorrendo a algumas cartas inéditas suas e a textos ignorados também de sua autoria.

António Sardinha e Baltazar Teixeira
O jovem estudante António Sardinha foi um activo elemento republicano na sua terra natal, Monforte, onde reinavam os caciques monárquicos. Curiosamente, o seu padrinho de baptismo era justamente um desses caciques, José Alfredo Menice Sardinha . Mantinha-se atento à acção do Partido Republicano na sua região, cujo porta-voz era o semanário Intransigente, que começou a publicar-se a 8 de Março de 1908 sob a direcção de Apolino Augusto Marques, com ampla divulgação nos diversos concelhos do distrito de Portalegre. A partir do seu número 74, de 1 de Agosto de 1909, a direcção passou para Baltazar de Almeida Teixeira, que foi uma figura singular da vida política portuguesa no século XX. Advogado e professor, Baltazar Teixeira testemunhou, ao longo dos seus 103 anos de vida, as grandes trans¬formações que Portugal conheceu a partir de 1890. Nasceu em Leiria a 12 de Dezembro de 1871, e morreu em Lisboa a 17 de Julho de 1975. Bacharel em Direito pela Universi¬dade de Coimbra (1908), foi despachado professor dos liceus, leccionando em Lamego (1901 a 1904), Beja (1904 a 1906) e Portalegre (1906 a 1914). Figura cimeira do Partido Republicano no distrito de Portalegre, participou nas diver¬sas actividades de propaganda ao mesmo tempo que abria banca de advogado. Em 1911 foi eleito deputado às Constituintes pelo círculo de Portalegre, e desempenhou as funções de Secretário do Parlamento. Com excepção do consulado sidonista, foi sempre deputado por Por¬talegre nas listas do Partido Democrático (P.R.P.) e sucessivamente eleito secretário da assembleia legislativa, cargo que desempenhava em 1926. Partidário indefectível de Afonso Costa, foi um dos dirigentes máximos do P.R.P. em Portalegre, mesmo quando transferiu a sua residência para Lisboa, em Julho de 1916. Desde Setembro de 1914 que leccionava no Liceu Passos Manuel - embora fosse, de facto, deputado - e nessa escola permanecerá até sua reforma, em 1938. Foi chefe de gabinete do Ministro da Instrução (Dezembro de 1914) e vogal do Conselho de Administração Financeira do Estado em 1915/6, 1918/9, 1919/20 e 1921/2. Iniciado na Maçonaria em data desconhecida, com o nome simbólico de «Lamartine», pertenceu às lojas «Pro-Veritate» (Coimbra) e «Obreiros do Trabalho» (1916, Lisboa), desempenhando car¬gos de relevo no Grande Oriente Lusitano Unido, incluindo o de membro do Conselho da Ordem. Dirigiu, juntamente com João Camoesas, o diário A Democracia (Lisboa, 1921), órgão do PR.P.. Em Portalegre foi director do Intransigente e de A Plebe (1914-1916, 1924 a 1932). Colaborou ainda no semanário de Elvas A Fronteira. Em 1945, aderiu ao Movimento de Unidade Democrática.
Foi o último sobrevivente das Constituintes de 1911, tendo o seu falecimento, em Julho de 1975, passado completamente despercebido.
Baltazar Teixeira foi contemporâneo de António Sardinha em Coimbra, mas não tiveram ali qualquer contacto. O jovem monfortense recorreu a ele na sua qualidade de advogado, como se comprova pela carta que lhe endereçou, na qual agradece um serviço prestado, enviando ao mesmo tempo um poema para eventual publicação no Intransigente:

«Meu bondosíssimo Amigo:
Acabo de saber quanto trabalho lhe custou a emancipação de meu irmão e a que ponto chegou a sua gentileza para connosco, recusando-se a aceitar os seus honorários de advogado. O meu Amigo calculará quanto eu me sinto rendido às suas contínuas atenções que me penhoram tanto mais por partirem de quem, como o meu Amigo, nenhumas relações entretinha com este seu criado até há bem pouco tempo. Isto, redobra duma maneira excepcional a minha dívida para consigo. Creia, pois, na sinceridade do meu reconhecimento e não deixe de me dar alguma vez o prazer de se utilizar dos meus limitados préstimos.
Aproveito o ensejo para o cumprimentar pelos melhoramentos introduzidos no seu jornal e faço votos que dessa sementeira em que o meu Amigo anda empenhado nenhum grão se perca.
Envio-lhe um soneto inédito, que o meu Amigo honrará publicando no Intransigente . Pertence ele a um livro de versos que dentro dum mês aparecerá editado por uma casa de Lisboa e do qual o meu Amigo terá um exemplar.
E desculpe o importuno que há uns tempos para cá não faz outra coisa senão incomodá-lo.
Mande-me sempre e aceite um cordial aperto de mão do seu
Amigo certo e agradecido
António Sardinha
Coimbra, 5-X-909» .

Em Novembro de 1909, surgiu nas páginas do Intransigente um artigo intitulado «Impressões», datado de Coimbra e assinado com as iniciais A. S. . Nele se comentava o boato recente sobre o assassinato de João Franco, que fora prontamente desmentido. O autor da nota lamentava-se: «Quando é que este boato deixará de ser blague?». E, mais adiante, contava outro episódio por ele vivido, quando um seu colega de estudo – era, por conseguinte, estudante – lhe anunciara: «Envenenaram a família real». Notícia tão falsa como a anterior. E concluía: «Quando é que este boato deixará de ser blague? Quando é que o povo português saberá cumprir o seu dever!?».
O incitamento ao assassinato de João Franco e ao envenenamento da Família Real eram evidentes…
António Sardinha não gostou daquele prosa, para mais assinada com iniciais iguais às suas, vinda de Coimbra e da lavra de um estudante cujo verdadeiro nome era, afinal, Alves Sequeira … A confusão que daí poderia resultar levou-o a escrever uma carta a Baltazar Teixeira, onde condenava as ideias expressas no artigo, e lhe solicitava que publicasse uma nota que desfizesse qualquer equívoco, aproveitando a oportunidade para clarificar o seu pensamento sobre o Regicídio:

«Meu Exmº Amigo
Alguém escreve de Coimbra para o seu jornal sob as iniciais A.S. O meu Amigo compreende como isto poderá levar a muitos espíritos a sugestão de que talvez seja eu. Ora eu quando escrevo tomo sempre a responsabilidade do que digo e não me agrada a ideia de que se possa supor que eu, um emancipado por temperamento e por educação, perfilhe no entanto opiniões que estão em luta aberta com as minhas. Sou um republicano, mesmo mais do que isso dentro da minha aspiração. A cultura que procuro para o meu espírito, levando-me a essa conclusão, deu-me também uma grande tolerância. A minha política é uma política de ideias e, porque as ideias fazem os homens e nunca os homens as ideias, eu nunca poderia afirmar que a morte do João Franco ou o envenenamento dos Braganças seria para o povo português o cumprimento dum dever. No estado de exaltação do ambiente encontro a justificação do regicídio, não como um crime político, mas como a suprema, a heróica, a sacrossanta desforra de alguém que, incarnando num momento de tirania a alma da Pátria oprimida, expandiu essa revolta humaníssima num acto, afinal meramente platónico. As ideias quando correspondem à aspiração duma época, triunfam sempre, não eliminando, mas convencendo, mas impondo-se. Por isso, meu Exmº Amigo, eu não gostarei de passar pelo A. S. O meu Amigo me dará o prazer de declarar no seu jornal que não sou eu. Desculpe-me e mande sempre o que é muito atento e muito agradecido

António Sardinha
Coimbra, 16-XI-909» .

No número seguinte do Intransigente, lá encontramos a nota esclarecedora: «Cumpre-nos satisfazer ao pedido do nosso amigo e ilustre poeta Sr. António Sardinha, declarando que não é S. Exª o autor do artigo Impressões, que no nosso último número foi publicado subscrito pelas iniciais A. S.»
Sardinha agradeceu a rapidez do esclarecimento:

«Meu Exmº Amigo
Quero-lhe agradecer a declaração que, a meu pedido, gentilmente fez no seu jornal. Muito obrigado lhe fico por ela e espero dever-lhe, já agora que lhe escrevo, mais um favor. É natural que amanhã meu irmão José Sardinha o procure para o meu Exmº Amigo o encaminhar no processo da sua emancipação. Carecemos dela com a maior brevidade. O meu Amigo o dirigirá no sentido dele a alcançar quanto antes e no modo de enviar o documento pelo qual ela consta a um concurso oficial.
Desculpe-me tanta e tanta maçada.
Mande sempre o que é, com um aperto de mão.
Amigo certo
António Sardinha
22-XI-909».

A polémica em torno da Coutada de Monforte
A «campanha municipalista» referida por António Sardinha não ocorreu um mês antes do 5 de Outubro, mas sim alguns dias depois.
António Sardinha teve intervenção na escolha dos elementos que integraram a Comissão Administrativa da Câmara Municipal de Monforte após a proclamação da República. Mas uma iniciativa daquela Comissão provocará da parte de António Sardinha uma viva reacção. A pedido de alguns populares, a Comissão agendou uma reunião para discutir a distribuição definitiva das terras que constituíam a Coutada de Monforte. Dessa forma, esses terrenos comuns, utilizados pelo povo desde tempos imemoriais, passariam a ser propriedade privada de alguns.
António Sardinha escreveu uma nova carta a Baltazar Teixeira, onde realçava a importância da questão:

«Meu Prezado Correligionário e Amigo:
Novo incómodo!
Soube hoje que em Monforte se pensa na distribuição da coutada municipal. É um acto gravíssimo que só prejudicará economicamente o concelho. O nosso amigo Ramos é provável que seja arrastado a concordar com semelhante disparate e por não conhecer o meio nem a questão. Pratica um grande serviço em nome da República evitando-o. Envio-lhe juntamente um artigo sobre a questão. Por que é não lhe recuse lugar no número do Intransigente de domingo próximo. Na quarta-feira será tarde. E nem o meu Amigo calcula o favor que me faz e a Monforte.
Escrevo-lhe de corrida. Fico ao seu dispor. Saúde e fraternidade.
Amigo certo
António Sardinha
Coimbra, 18-XI-910».

Contrariamente ao pretendido, o artigo não saiu no domingo, mas sim na quarta-feira, dia 23 de Novembro, assinado ainda o pseudónimo de «António de Monforte» .
Nesse texto, António Sardinha insurgia-se contra a distribuição das terras da Coutada, considerando-a uma «sobrevivência do velho comunismo agrário», remontando a sua existência aos tempos de Afonso Henriques. Ela sempre tinha sido a base da autonomia politica de Monforte: «nunca o povo, nem com tributos braçais, se viu onerado pelas obras concelhias, pois o rendimento da coutada assegurava ao município a completa consecução de tudo o que empreendesse». Uma alteração tão radical «nada adiantará a não ser a satisfação temporária de necessidades supérfluas, e a Comissão prepara unicamente o suicídio lento do Município, transigindo com a exigência de algumas criaturas que já pensam nos belos dias de pândega que a venda da sua gleba lhes trarás!». Finalmente, sempre em nome da tradição e da História, António Sardinha anunciava: «voltarei ao assunto, levá-lo-ei mesmo ao senhor Presidente do Governo Provisório que sempre se manifestou pelo respeito e protecção às instituições tradicionais do Povo Português como garantia do robustecimento do país».
Localmente, a questão deve ter suscitado forte polémica. José Alfredo Menice Sardinha publicou então uma carta dirigida à Comissão Administrativa do Município de Monforte, proclamando a sua independência e imparcialidade em relação ao assunto e manifestando que, «não lhe sendo antipáticas as instituições republicanas, nem se declarando incompatível com elas, no entanto se alheia completamente da política» .
A posição de António Sardinha foi muito mal recebida pela população de Monforte. É o que se depreende de um novo artigo por ele subscrito, desta vez com o verdadeiro nome, intitulado «De Cara erguida» , datado de Portalegre, 29 de Novembro de 1911, e publicado no Intransigente. Nele lamenta e denuncia uma campanha desencadeada contra si: «Houve almas danadas que, abusando criminosamente da minha ausência, deturparam toda a intenção do meu artigo que há dias publiquei sobre a Coutada de Monforte. Conseguiu-se – e este era o fim – que o povo da vila, que ainda há pouco mais de um mês recolhera carinhosamente a minha boca palavras novas de Justiça e de Esperança, se voltasse agora contra mim com as mesmas invectivas, com as mesmas imprecações que se atiram a um inimigo, mas a um inimigo do bem comum!». António Sardinha evoca o seu passado republicano e a propaganda das novas ideias por si feita em Monforte. Há um travo amargo nas suas palavras, insinuando que a população se mostrara mal-agradecida pelo seu esforço: «o povo, sinceramente, ingenuamente, ludibriado afinal como sempre, deixa-se caiu na armadilha, cujo alcance consentia, por um lado, em cevar a mesquinhez de um vilíssimo despeito pessoal contra uma determinada figura, por outro lado, em inutilizar a acção redentora que eu poderia vir a exercer, desde que continuasse na faina em que me empenhara de o educar, de o chamar à vida e à razão, libertando-o da garra estrangulante do caciquismo, promovendo a instrução e desenvolvendo o espírito cooperativista numa região agrícola em que as classes trabalhadoras se arrastam numa situação deplorável». Sem rebuços, reivindicava para si o estatuto de único republicano de Monforte antes do 5 de Outubro: «eu era a única pessoa que, sob o regime extinto, apregoava abertamente a minha fé democrática, procurando a passo e passo, com lentidão, sim, mas com, perseverança, derramar a semente de alguma coisa mais nobre, de maior, de mais alevantado (…). Fui eu também que revelei a essa pobre gente que o voto é uma coisa que não de pede nem se dá! E o povo de Monforte, que se via oprimido, despedidos uns pelos senhorios, ilaqueados outros pelos patrões, (…) sentiu abrir-se a seus olhos um mundo onde se rasgaram horizontes bem melhores do que esses!». Sardinha tinha planos para o futuro: «Com o meu esforço e com o de companheiros de luta que de Coimbra me viriam reforçar, dentro em pouco o povo de Monforte atingiria pela propaganda o estado de emancipação e consciência cívica que o transformaria num valioso núcleo parara Pátria e para a República».
Este artigo suscitou vivas reacções. David dos Santos Madeira, Aspirante da Fazenda, e Joaquim António Guaparrão, alfaiate, ambos de Monforte, protestaram contra as palavras de António Sardinha em que ele reivindicara para si o estatuto de único republicano antes do 5 de Outubro na sua terra: «Ou há da parte do Sr. Sardinha um lapso de memória, ou acintosamente quer negar aos signatários desta declaração a mesma fé democrática e a mesma perseverança em derramar a semente de alguma coisa mais nobre entre o povo de Monforte» . Lançavam mesmo um repto, pedindo «ao Sr. António Sardinha que enuncie os serviços que prestou à causa democrática adentro dos muros de Monforte, antes de ser implantada a República».
António Sardinha escreveu um novo artigo , datado de 8 de Dezembro, já em Coimbra, recusando envolver-se numa «rixa individual», argumentando que «nem todas as armas são nobres». «Só me limito a estranhar que me venham falar em nome do povo redimido pela República duas criaturas que pelas últimas eleições militaram denodadamente no caciquismo governamental, que em Monforte se compunha de teixeiristas e franquistas, como o Intransigente registou na devida altura. Antes disso, esses senhores haviam servido com igual valor o Partido Progressista; e um deles, membro de uma mesa eleitoral, em 28 de Agosto último, permitia-se ditinhos de troça e desprezo pelos republiqueiros, sempre que o escrutínio lhe revelava uma lista radical. As voltas que o mundo leva!».
O membro da mesa eleitoral visado, José Augusto da Silva Portel, não ficou indiferente e tentou explicar o que sucedera . Integrara a mesa porque «os cidadãos que nesta vila trabalharam pela lista republicana receavam de que se fizesse batota na mesa e não fossem contadas as suas listas, comprometendo-me eu a que toas que entrassem seriam contadas, visto fazer parte da mesma». Quanto à troça manifestada, ela fora dirigida a algumas listas que misturara o nome de José de Andrade Sequeira, oficial da Armada e candidato republicano, com outros monárquicos. Finalmente, confessava que o seu voto tinha sido monárquico até às últimas eleições - «como empregado público tinha que assim ser» - mas que estava agora inscrito no Centro Republicano. Quanto a António Sardinha, acusava-o de ter sido «um faccioso na formação das comissões administrativas para as diferentes corporações e um traidor ao Partido Republicano, porque indicando para ali só nomes de cidadãos ao serviço do bloco, ficava tudo exactamente como antes, politicamente falando, apenas com mudança de rótulo (…). O Sr. António Sardinha traiu o Partido Republicano».
O clima político conservou-se agitado e ao rubro em Monforte e no Centro Republicano local, com ataques violentos entre David dos Santos Madeira, Francisco António Caldeira e o Dr. João Duarte de Oliveira, em que este último cita e apoia António Sardinha. Ambos fizeram diligências junto das autoridades republicanas de Portalegre, envolvendo também a possibilidade de recuperar a velha figura tutelar de Alfredo Menice Sardinha, padrinho de António Sardinha, como se vê por esta carta escrita a sua noiva:

«A causa do meu silêncio ontem foi de sair com o Oliveira a quase às duas para Portalegre. Levava-nos a política local. O Governador Civil abriu os olhos e convenceu-se de que a razão estava connosco. O Oliveira ia por causa dumas insídias levantadas pelo Administrador com o fim de o abranger ao Padrinho e a mim. Eu ia porque aqui trabalhava-se fortemente para que não se me guardasse o lugar de oficial do registo. Uma pouca vergonha. Chegámos às quatro horas e quando acabamos de conferenciar com o governador o Oliveira, eu com o Baltazar Teixeira, passava já a hora do correio e estava caindo literalmente com fome. Daí a minha falta.
Como sentirás alegria com isso, dir-te-ei que colhemos, da nossa viagem, um fruto óptimo. O Baltazar Teixeira asseverou-me que conhecia a má vontade de certos elementos monfortenses contra mim, mas que essa má vontade de nada valia porque ele sabia quem eu era e quem eram os outros. Por seu lado, o Governador Civil mostrou desejos duma aproximação entre ele e o Padrinho. Que o Padrinho é uma força digna de que a República precisa e então que não se deve condenar, à inércia o administrador é natural que seja substituído e nós teremos, uma completa satisfação. O governador já viu sobretudo que eu na questão da coutada é que estava com a verdade e a justiça. E à noite, no grémio, ele que ficava torcido comigo, porque me julgava servindo ideias obstrucionistas, ao avistar-me veio ao meu encontro e deu-me um abraço de franca simpatia. “Qui rira bien c’est le dernier…» .

Mas a questão inicial – a Coutada de Monforte – desapareceu completamente da polémica animada pelos republicanos desavindos nas páginas do Intransigente, bem como as reivindicações de pioneirismo na militância republicana em Monforte…

A expulsão de António Sardinha do Centro Republicano de Coimbra
Simultaneamente a esta polémica tinha lugar em Coimbra outro conflito envolvendo António Sardinha.
O Centro Académico Republicano local, no qual estava filiado, resolveu instaurar-lhe um inquérito, por denúncia de dois associados, que levantaram suspeitas quanto à sinceridade política de António Sardinha. Em boa verdade, basta lermos as suas cartas íntimas dessa época para comprovarmos que já se iniciara a viragem que o levará à Monarquia. Tendo sido aprovada a sua expulsão, a decisão foi revista numa assembleia geral que decorreu a 16 de Fevereiro de 1911, e que revogou a anterior decisão, sendo-lhe feita uma reparação pública. Em carta a Ana Júlia da Silva, comentava:

«É hoje que em Assembleia Geral será debatido o meu caso no Centro Republicano. Resultará num triunfo moral para mim. Continuo mais ou menos a ser o mesmo homem de sorte que ela me não falte! Neste caso, que me podia prejudicar, só me vem servir de termómetro para avaliar da estima que me consagram os meus amigos» .

Dois dias depois, em nova carta para a noiva, fazia o balanço do sucedido:

«Sobre o caso do Centro nem tu imaginas como esta gente toda foi para mim! Foi votada por aclamação a minha permanência no Centro e deliberou-se que se me desse uma reparação pública. Eu contava com a má vontade geral. A Academia em geral não leva a bem que meia dúzia de rapazes se destaquem e levem uma vida um pouco mais isolada. Em Coimbra, odeia-se o literato e muito mais ainda se ele é esotérico. Contra os esotéricos então há uma raiva de morte. Pois apesar de tudo isto, a verdade mete-se tanto pelos olhos, tem um tamanho poder que a coisa redundou num triunfo. Tenho agora uma questão pessoal a liquidar com o meu acusador. E mais nada» .

O Intransigente noticiava a reunião e o seu desenlace : «com prazer informamos os nossos leitores que o Sr. António Sardinha saiu com honra e dignidade, como era de esperar do seu belo espírito e firmes convicções republicanas, do triste incidente». Ao mesmo tempo, informava que Mário Ramos da Silva, estudante de Coimbra, enviara à redacção do jornal um comunicado relatando o incidente e manifestando o seu desgosto por ter «caído na fraqueza de se deixar arrastar na onde de suspeições levantadas por dois sócios do centro ao carácter daquele ilustre académico».
João Duarte de Oliveira, que sempre apoiara António Sardinha, sublinhava a decisão do Centro Republicano Académico, transcrevendo a notícia surgida no diário O Mundo: «Com os meus parabéns de sincera felicitação ao distinto académico, e a minha homenagem ao salutar rasgo de tão nobre e levantado civismo do Centro Académico de Coimbra» .
Mais algumas informações sobre o caso foram então prestadas por outro estudante de Coimbra, Mário Portel, igualmente sócio do Centro. A proposta de expulsão de Sardinha fora feita por Alfredo dos Santos e por outro associado de apelido Ventura, baseados nos seguintes factos:
«a) Ter António de Monforte, na Livraria Cunha, amesquinhado, criticando com visível má-vontade, o Partido Republicano e Governo Provisório, em palestra com Alberto de Monsaraz.
b) Repugnar-lhe o convívio com sócios e dizer-se isolado.
c) Apresentar ausência de convicções políticas.
d) Não comparecer até hoje a nenhuma sessão do Centro Republicano, não obstante a sua inscrição datar de há meses»
Foi em face destas acusações que António Sardinha foi expulso, decisão essa revogada após a sua defesa. Mário Portel reconhece ter sido um dos que votou a favor da expulsão, voltando atrás depois de ouvidas as razões do visado. E concluía: «A dignidade e o carácter de A. de Monforte saíram imaculados e a sua auréola brilhante cegou os caluniadores» .
Mas nessa época já António Sardinha tinha muitas dúvidas quanto às virtualidades do regime que ajudara a proclamar: «Eu que acreditei nestes homens, eu que me convenci que se faria ainda alguma coisa!…» . Por essa época ainda foi convidado para integrar uma candidatura pelo Partido Evolucionista, que recusou .
Ano e meio depois em Julho de 1912, a ruptura era definitiva: «Eu que honesta e confiadamente acreditei na República, com horror a repudio. Vai dividir a família portuguesa, para nunca mais se reconciliar» .
Consumara-se, assim, uma viragem dramática que se iniciara em Janeiro de 1911. António Sardinha deixava para trás o seu passado republicano para abraçar, sem rebuços e desassombradamente, o ideal monárquico, contribuindo simultaneamente, para lançar as bases ideológicas do Integralismo Lusitano.

Publicado em Gil Vicente, Revista de Cultura e Actualidade, nº 4, IV Série, Janeiro – Dezembro de 2003, pp. 43 a 55.

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