Em fazenda verde-rubras...

Isabel Lousada

Os directores confirmam a nomeação do general Carvalhal para comandante da Divisão e a bandeira republicana foi içada no quartel-general, pelo Tenente Valdez, em substituição da bandeira branca. O Povo, vendo as suas cores tão queridas, rompeu numa calorosa ovação. À Pátria e à República. […] No quartel do Carmo o coronel Malaquias de Lemos disse-me que já tinha mandado içar a bandeira republicana em todos os quartéis… (SANTOS, 2007:91)

A identificação dos contornos daquela que terá sido a participação feminina ao lado dos republicanos, foi sendo timidamente delineada nos últimos anos. Mas a garantia, extensão e empenho, retratando o envolvimento havido, reside no testemunho eternizado pelas palavras de uma das próprias conspiradoras. Adelaide Cabete (1867-1935), mulher ímpar aos mais diversos títulos redigiu um texto evocativo dos momentos, e dias, que antecederam a implantação da República, em 1910 e dos que lhe sucederam. É ela, afinal, quem nos irá falar hoje:


Na madrugada de 4 de Outubro de 1910, fui acordada ao som do troar do canhão e da fusilaria.

A revolução republicana, que devia fazer sossobrar para sempre, um trono carcomido e todo êle coberto de vergonhosas tradições e que os reis da dinastia brigantina não souberam honrar, era um facto.

Desconhecíamos a data certa, conquanto não fôsse para nós segrêdo, que a hora de redenção estaria para breve.
Alegria indescritível.

Mas não menos alegria, experimentamos, eu e a minha amiga e falecida colega, Drª. Carolina Beatrís Angelo, quando o grão-mestre adjunto da Maçonaria Portuguesa, Dr. José Castro , nessa época em exercício efectivo, numa noite de agosto dêsse ano redentor e debaixo do maior sigilo maçónico, nos dava o encargo de mandar fazer 20 bandeiras verde-rubras no praso máximo de 48 horas.

Para maior segrêdo e evitar qualquer falta ao compromisso tomado, foi por nós proposto que a confecção das referidas bandeiras seria feita só por nós ambas.

Tudo combinado.

No dia seguinte recebia-se a fazenda e, nessa mesma noite, a tarefa estava concluida, 24 horas depois os revolucionários estavam de posse do símbolo sagrado da Revolução.

A revolta deveria estalar no praso máximo de 48 horas.

! E que prazer espiritual, sentir entre mãos, ter bem junto de nós, a bandeira querida, o estandarte glorioso que deveria conduzir à vitória as tropas republicanas!

Com que emoção evoco aquelas horas de trabalho febril, esgotante mesmo!

No Museu da Revolução, lá vimos algumas, juntamente com outras relíquias, quando em piedosa romagem fomos visitá-lo, alguns meses depois fechado, por debaixo de nós todos.

Um dia foi passado sôbre o da entrega das bandeiras, mais outro, ainda outro e só no terceiro, lobrigamos um pequeno suelto no grande baluarte da República, “O Mundo”, ainda dirigido pelo intemerato e saùdoso França Borges, falando da hidra, de tropas de prevenção, etc.

O movimento não tinha sido posto em execução por qualquer circunstância.

Não desesperamos.

Os dias foram passando.

Surge, porêm, o 4 e 5 de outubro.

Não foi surpresa.

Que emoções!

Que alegrias!

!? E depois as manifestações de regosijo?!

A parte baixa da cidade estava repleta de povo que tinha descido dos seus bairros.

Eram palmas, abraços, vivas, gritos, tudo quanto a efusão de alegria podia fazer para exteriorizar o sentimento íntimo de cada um.

Horas que já lá vão longe e que não tenho esperança de tornar a vivê-las de novo.

E como é bom recordar o passado!

Que fé!

Que esperança!

Que futuro risonho despontava!

Era a República.

Era a realização do ideal de tantos anos de luta, de sacrifícios, de esforços inauditos, de conspirações perigosas e de grandes contrariedades e desfalecimentos.

E já lá vão 10 anos!

Passando hoje a 1.ª década republicana, não queremos deixar de gritar:

Viva a República!

Lisboa, Outubro de 1920.


O texto ora transcrito fala de per se e bastar-se-ia a si mesmo, não fora a intenção de o procurar contextualizar. A data em que as bandeiras foram confeccionadas passa a poder ser fixada, e alertados para a importância do periódico O Mundo, dirigido por França Borges , lemos acerca dos projectos gorados. Sobre a autora muito foi já desenvolvido em variadíssimas edições e a propósito de inúmeros contextos. Assim, ressalvo somente um ou dois aspectos com o intuito de retratar a emblemática figura e as convicções subjacentes à singularidade do seu protagonismo .
Republicana, socialista e laica assumida bateu-se pela liberdade sempre que pode fazê-lo. Envolvendo-se nos debates científicos, sociais e políticos sobre matérias diferenciadas, soube afirmar-se nos domínios mais candentes do seu tempo. E soube aderir, e soube escolher e soube participar e soube incitar … sobretudo a mulher, outras mulheres, particularmente as mais humildes, pobres e desfavorecidas, em defesa de um ideal de justiça que sempre a animou!
Foram duas médicas, pioneiras e intrépidas lutadoras pela causa feminina, as conspiradoras a favor da instauração da República em Portugal, decorria o quente mês de Agosto, confessou-nos … debaixo do maior sigilo maçónico, que souberam respeitar … e no prazo máximo de 48 horas … 20 bandeiras …encomendadas… Em fazenda verde-rubras … confeccionadas e entregues …
A tarefa era nobre e compaginava-se com a actividade que ambas vinham desenvolvendo. Por seu turno, Adelaide Cabete havia escolhido, quando foi iniciada, pelo próprio Grão-Mestre do Grande Oriente Lusitano Unido, a 1 de Março de 1907, o nome simbólico Louise Michel (1830-1905), figura destacada na Comuna de Paris …
Que simbólica esta bordadura … esta união… Em fazenda verde-rubras …
Cerzir, unindo de modo imperceptível as duas cores, exibindo os dotes próprios das mais exímias artes da costura, harmonizando-os e equiparando-os às artes da cirurgia. Momento sublime capaz de a um só tempo igualar as capacidades científicas e os méritos alcançados sem perder a feminilidade.
Dualidade que haveria precisamente de manter-se ao longo de séculos como necessária à defesa do feminismo.
Tal como numa cirurgia se assiste ao derramar do sangue, a fim de procurar eliminar o mal, ou recuperar o bem! Unindo de modo indelével duas metades diametralmente opostas e capazes elas próprias, cores complementares, de simbolizar a vida, (verde, verdejante) e a morte (rubro, sangue) unidas, fundindo-se … transmutando-se …recriando-se … em nova forma, diria nova tonalidade …dando a conhecer o tom da terra, castanha… capaz de providenciar à vida … de novo …ou renovada!
Convocamos Joaquim Ribeiro de Carvalho, pois foi na seguinte composição, publicada em 1909, que pressentimos um grito inicial de mobilização e incentivo à militância feminina:


Mulheres do meu Paiz, ó bemfadadas
Virgens da Patria minha aventurosa,
Bordae nossa bandeira gloriosa
Com vossas doces mãos abençoadas…

Terão assim mais fé nossas espadas,
E a nossa alma será mais corajosa,
Pois a valia, quando o amor a ésposa,
Obra prodigios e desfaz ciladas…

Dae-nos o amôr, que é força e que é guarida,
E os nossos males todos cahirão,
E a nossa fé nunca será vencida…

Lindas mulheres desta ideal Nação,
Se sois o claro sol da nossa vida,
Sêde tambem o sol da redempção.



Torna-se plausível entender na “chamada às Armas” das mulheres do seu país, mais do que uma mera recreação poética, antes uma profecia:

Bordae nossa bandeira gloriosa //Com vossas doces mãos abençoadas…

Este facto é sobretudo digno de nota se lembrarmos que a orientação surge em soneto impresso no órgão da Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, e em que militavam à época as republicanas, maçonas e feministas, Ana de Castro Osório (1872-1935), Adelaide Cabete (1867-1935) e Carolina Beatriz Ângelo (1877-1911).

E é através da poesia encomiástica dedicada “Á Dr.ª Adelaide Cabete …” por Maria O’Neill antecedida pela epígrafe: “TALENTO VIGOROSO E CORAÇÃO ABERTO A TODO O GENEROSO SENTIR.”
que somos confrontados com o testemunho concordante do envolvimento e acção da livre-pensadora, imortalizando de modo ímpar a memória, dessa:


Mulher cujo vigor d’ alma venéro,
Como tudo que é grande, justo, e forte!
Quizera ter a lira dum Antero
Para esboçar em nítido recorte
O teu caracter firme, dôce e austero,
Que a todas nós pôde servir de norte
Nas bravas lutas do destino fêro.
Pois foi com essas mãos que corpos saram
Que as bandeiras da Pátria nos bordaste, (1)
E no cinco de Outubro tremularam
Saudando o novo ideal com que sonhaste.
E foram essas mãos que amortalharam
Marido e Mãe, tudo o que mais amaste!



O’Neill, insígne escritora e poetisa soube exaltar a virtude em Adelaide Cabete, pois apesar da sua origem humilde não se deu nunca por vencida, dotada de uma força de vontade férrea, determinada, ao ponto de lutar herculeamente, e alcançando em vida ombrear, com cientistas e intelectuais, em sede própria, partilhando convicções e confrontando ideais, foi a si que coube cerzir as cores da nação, em símbolo tão caro aos revolucionários. Sabemos que houve outras mulheres envolvidas, nomeadamente as enfermeiras, a elas coube ajudar a causa e foram também preciosas as suas mãos, mas desta feita tratando os feridos, resultado dos confrontos havidos . Também nas ambulâncias, Rosa Ramos Pereira, disponibilizando material para curativos Clotilde Monteiro Grilo, ou ainda Maria Alexandrina d’Almeida Lopes cedendo a casa para o quartel-general lá se instalar, são alguns dos nomes registados.
Prestes a finalizar, resta lembrar as convicções políticas de Adelaide Cabete, nomeadas por uma das suas companheiras de luta, em causas tão importantes como a liberdade, o progresso e a justiça social, como ambas tão bem as entendiam. E é justamente a jurista espanhola, Clara Campoamor Rodríguez (1888-1972) peremptoriamente quem afirma acerca da médica portuguesa, no periódico madrileno, La Libertad:

Creadora y presidenta de varias instituiciones, como Consejo Nacional de Mujeres Portuguesas, Sociedade antialcohólica y Allianza nacional feminista, orienta en todas ellas su actividad el sentido político de su ideología republicanosocialista.

Ciente dos meandros e emoções envolvendo o compromisso e a missão para a qual havia sido convocada a ilustre médica, Campoamor não hesita em retratar:

ella, [Adelaide Cabete] con elle alma tensa, que avizora el peligro de los suyos y el próprio: en esos instantes crueles en que se abren, alternativamente, a la esperanza, el suplicio o el triunfo, callada e oculta, como Marianita Pineda en Granada, bordaba la bandera de la libertad que los revolucionários izaron triunfante en Octubre de 1910, al proclamar, vencedores, 1ª República.

Fazendo culminar a belíssima comparação entre a mártir granadina, Mariana de Pineda (1804-1831) e Adelaide Cabete, nos seguintes termos:
Sucumbió, por bordar la bandera libertadora, nuestra Mariana de Pineda, y venció, bordándola, la Ibera hermana.
Pelo exposto, resulta clara a entrega de Adelaide Cabete à causa da Liberdade, e o preço que por ela pagou foi, as mais das vezes, elevado. A condecoração recebida do M.I. Presidente da República, o Exm.º Senhor Dr. Mário Soares, e ainda que a título póstumo, no dia 10 de Junho de 1995- Medalha e Colar de Grande Oficial da Ordem da Liberdade, simbolizam o tributo a uma mulher que soube manter-se fiel às suas convicções e a quem a Portugal ficou subsidiário.

Hoje, querendo assinalar a passagem do centenário da proclamação da República, pois estou em crer que Adelaide Cabete evocaria entusiasticamente de novo, aproprio-me do seu texto:


Era a República.

Era a realização do ideal de tantos anos de luta, de sacrifícios, de esforços inauditos, de conspirações perigosas e de grandes contrariedades e desfalecimentos.

E já lá vão 10 [100] anos!

Passando hoje a 1.ª década [o 1.º centenário] republicana [o], não queremos deixar de gritar:

Viva a República!

Lisboa, Outubro de 1920.




Bibliografia:
CABETE, Adelaide. 1920. “1910”. In Noticias do Norte, Braga, n.º 73, ano X, 3.ª série, 5 Out., p. 3, col. 1-4.
CARVALHO, Ribeiro de. 1909. A Mulher e a Criança. n.º 2, Maio, Anno I, Lisboa, p.10.
CASTRO, Zília Osório de, Esteves, João (dir.). 2005. Dicionário no Feminino (Séculos XIX - XX). Lisboa. Livros Horizonte.
A Fronteira de 4 de Maio de 1924, «Adelaide Cabete: Médica Elvense Homenagem de “A Fronteira”, e dos seus admiradores», Elvas, Typ. Elvense, p.7.

LOUSADA, Isabel. 2009. Adelaide Cabete (1867-1935). Fio de Ariana 6. Lisboa. CIG. [No prelo]
[RODRIGUEZ], Clara Campoamor. 1928. “El siglo xx, Mujeres de hoy. Adelaida Cabete [sic]”. In La libertad, Madrid, 13, Set.
SANTOS, Machado. 2007. A Revolução Portuguesa 1907-1910. Pref. António Reis. Lisboa. Sudoeste Editora.
VILHENA, Henrique de. 1940. «Adelaide Cabette». In Em memória. Lisboa. Livraria Nacional, pp. 163-184.

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