“Eu tinha uma ardente esperança no futuro;
e a minha propaganda era iluminada pelo clarão
abençoado na fé num mundo novo, liberto de
injustiças – um mundo sobre que a Fraternidade
desdobrasse o seu manto protector.”
Contemporânea de Adelaide Cabete (1867-1935), Ana de Castro Osório (1872-1935), Angelina Vidal (1853-1917), Carolina Beatriz Ângelo (1877-1911) e Beatriz Pinheiro de Lemos (1872-1922), Maria Veleda integrou o restrito grupo de mulheres que marcou as duas primeiras décadas do século XX, devido a uma rara, corajosa e decidida intervenção nos acontecimentos sociais, políticos e educativos. Exerceu a profissão de professora em localidades do Algarve e do Alentejo e em Lisboa; ambicionou ser escritora e acabou por se empenhar no combate político por um novo regime - a República; promoveu a emancipação feminina; liderou o movimento associativo dos docentes do ensino livre; e foi pioneira nas campanhas públicas de protecção às crianças de rua, tendo publicado as Memórias no jornal República, em 1950, quando completou 79 anos .
Acreditou que era possível criar um mundo melhor e procurou conciliar as suas responsabilidades enquanto educadora de crianças e de adultos, com o empenhamento social, intervindo através da palavra, escrita e falada, e militando em agremiações. Denunciou males sociais, preocupou-se com os mais desfavorecidos e desprotegidos e, ela própria, conviveu, tal como Angelina Vidal, com a miséria, sendo alvo, por mais de uma vez, de subscrições entre as companheiras de forma a obstar a graves problemas económicos e de saúde.
As suas Memórias, repartidas em XXII Capítulos e antecedidas do resumo dos conteúdos desenvolvidos , constituem um precioso testemunho dessa vida plenamente preenchida de emoções e reflectem as vivências de mulheres dum tempo em que estavam relegadas para um plano secundário e com limitado espaço de actuação, sendo paradigmáticas na forma como revelam a necessidade do republicanismo capitalizar a intervenção feminina, de modo a acelerar a corrosão da Monarquia. Evidenciam ainda os sobressaltos por que a mulher, ainda para mais mãe solteira e com um filho adoptivo a cargo , passava para conseguir sobreviver e obter emprego, mesmo na área do ensino, tradicionalmente considerada mais acessível.
Ao incidirem no período compreendido entre 1905 e 1915, abrangem os anos áureos do ideal republicano e das batalhas pela emancipação feminina e pela criação de melhores condições para as crianças desprotegidas e abandonadas ao infortúnio, abarcando três fases distintas da autora: iniciam-se na época em que, sendo professora, tinha como vocação a literatura, aspirando a tornar-se uma escritora; com a partida para Lisboa, nasce o interesse pelo republicanismo, assumindo então o papel de propagandista, em que associa o combate à Monarquia à reivindicação de direitos para as mulheres e crianças; e num terceiro momento entra-se, irremediavelmente, na era do desencanto, em que se afasta da política e abdica de uma intervenção social continuada, fruto das desilusões provocadas pela conturbada evolução do regime por que tanto tinha batalhado, ainda que nunca tenha deixado de se assumir como republicana.
1. Aspirando a ser escritora
Filha de João Diogo Frederico Crispim e de Carlota Perpétua da Cruz Crispim, “proprietários abastados, cuja fortuna foi, entretanto, desbaratada” Maria Veleda nasceu em Faro, em 1871, no “meu lindo Algarve, florido, luminoso, ideal!” , frequentou um colégio dos três aos seis anos, cuja directora era Josefa Leiria , e cedo começou a trabalhar, dando explicações, devido ao falecimento do pai. Os primeiros passos pareciam orientá la para a escrita, colaborando em publicações literárias, actividade que acumulou com a profissão de professora primária enquanto leccionou em terras do Algarve e Alentejo, onde “produzia muito então” : assinou textos em A Tradição (1899/1904), revista mensal de etnografia de Serpa, dirigida por Ladislau Piçarra e Manuel Dias Nunes, “republicanos e livres-pensadores de quem recebi as primeiras ideias emancipadoras que me guiaram mais tarde pela vida fora” ; Ave Azul (1899/1900), importantíssima revista de arte e crítica editada em Viseu e dirigida pelo casal Carlos de Lemos e Beatriz Pinheiro; Nova Aurora (1900/1901), revista mensal de Tábua; O Círculo das Caldas (1901), das Caldas da Rainha; Germinal (1901/1902), do Porto; Lisboa Elegante (1902), revista quinzenal ilustrada, editada na capital; Sociedade Futura (1902/1904), revista de arte lisboeta dirigida por Ana de Castro Osório e, posteriormente, Olga de Morais Sarmento da Silveira; O Independente (1902/1906), periódico do Porto; O Cruzeiro do Sul (1903), semanário literário, noticioso e charadístico de Olhão; e Gonçalves Dias (1903) , número único dedicado ao escritor, falecido prematuramente.
Colaborou ainda em O Diário Ilustrado, onde redigiu a primeira crítica de um livro de Branca de Gonta Colaço; O Repórter, jornal da responsabilidade de Cândido de Figueiredo; e no Almanaque das Senhoras, de Guiomar Torrezão, onde ensaiou “os primeiros passos na estrada das letras” . Aliás, foi para defender esta escritora que Maria Veleda entrou em polémica com Júlio Dantas, tendo posteriormente ripostado a Angelina Vidal, no jornal O Mundo, por ela censurar “rudemente as mulheres que se dedicavam à literatura ou a quaisquer outras ocupações que não fossem as caseiras, aconselhando-as de preferência a ‘passajar meias’…” .
Em 1904, quando exercia o magistério primário particular em Serpa, editou contos para crianças intitulados Cor-de-Rosa, “dos quais saíram doze fascículos mensais que se esgotaram completamente” . Na capital, ainda frequentou meios literários e participou em serões em casa de Ana de Castro Osório e Paulino de Oliveira, residentes em Setúbal, onde “declamávamos os nossos trechos mais modernos” , “conversávamos sobre os assuntos literários mais em voga; e muitas vezes nos esquecíamos do tempo até de madrugada” . Também conviveu com Olga Sarmento da Silveira e outras senhoras “que se davam à cultura das letras” , tendo então conhecido a jornalista Virgínia Quaresma.
Só com a partida para Lisboa, em 1905, é que começou a desvincular-se da produção literária e passou a interessar se pelos temas feministas e eminentemente políticos. A esta viragem não foram alheias as dificuldades que teve de enfrentar para sobreviver e cuidar da família e a circunstância de se ter empregue como professora regente num centro escolar republicano. E se, como ela própria assinalou, deixou na carreira das letras “um nome apagado e esquecido” , já o mesmo não se verificou enquanto propagandista, ao sobressair de entre as activistas republicanas e feministas, cumprindo “o desejo que vinha alimentando desde muito nova de subtrair-me ao meio banal em que sempre vegetara” .
2. O empenhamento político
Em Lisboa, já com mais de trinta anos, e após infindáveis dificuldades e peripécias para obter emprego e alojamento, a sua vida mudou irreversivelmente de rumo ao aceitar o lugar de professora-regente do Centro Escolar Afonso Costa, situado na Calçada de Arroios e dirigido por Alves Torgo, “pessoa de probidade inconcussa e bondade pouco vulgar, muito atencioso para com toda a gente” , recebendo “vinte mil réis por mês de honorários e habitação” , o que “chegava para viver-se sem grandes privações” . Surgiram os primeiros contactos e o convívio quotidiano com os republicanos que frequentavam o Centro, desde Ricardo Covões a Afonso Costa, e a leitura de jornais mais politizados, como O Século e A Vanguarda. Neste, dirigido por Magalhães Lima, encetou actividade regular como cronista, abordando temas sociais e feministas.
Depois, apareceram os convites para assistir a sessões de propaganda, tendo-se iniciado numa conferência proferida por Fernão Botto Machado no Centro Republicano Cândido dos Reis, a que se deslocou acompanhada da amiga Judite Pontes Rodrigues e onde se evidenciaram por serem as únicas mulheres presentes. Perante a inesperada assistência feminina, Botto Machado “falou sobre a necessidade de toda a família portuguesa formar um bloco contra o regime monárquico” , “mas que tal bloco não deveria ser constituído unicamente por homens” , sendo “urgente que as mulheres portuguesas acordassem do seu sono secular e concorressem ao lado dos seus maridos, dos seus pais, dos seus irmãos, dos seus noivos, para a grande reivindicação dos direitos modernos!” .
Multiplicaram-se os contactos, tendo frequentado “assiduamente todos os lugares onde se realizavam sessões públicas e conferências de propaganda” e conhecido “os homens mais notáveis da família republicana” : Magalhães Lima; Manuel de Arriaga, “adorável velhinho que me inspirou sempre a maior veneração” ; Bernardino Machado, “sempre muito risonho e tão ‘cordial’ que até o denominavam assim” ; António José de Almeida e Alexandre Braga, “oradores de primeira ordem, cujo verbo grandíloquo arrebatava, dominava as multidões” ; Teófilo Braga, “pessoa simples, despretensiosa na intimidade, e para os novos cheio de indulgência toda paternal” ; João Chagas, “o ardente panfletário” ; Jacinto Nunes; João de Meneses; Augusto José Vieira; França Borges, director do jornal O Mundo e que “foi um dos principais baluartes da República” ; Daniel e Rodrigo Rodrigues; Estevão de Vasconcelos; Afonso Costa, “que tão amado e tão odiado foi em toda a sua vida de agitador de massas e apaixonado defensor da República” .
O passo subsequente, e mais arrojado, foi o de se tornar oradora, registando-se o baptismo numa conferência no Centro Botto Machado, onde abordou o imposto de consumo: “Quando comecei lendo o meu discursozinho, as mãos tremiam-me, as pernas vergavam-me, mas eu tinha-o semeado de frases revolucionárias, que a assistência sublinhava com ‘apoiados’ e salvas de palmas, de maneira que prontamente me senti calma e senhora da situação” . Algumas das suas intervenções foram coligidas no livro A Conquista , com prefácio de António José de Almeida.
Após o regicídio, ocorrido a 1 de Fevereiro de 1908, intensificou-se a propaganda e “proferiam-se as afirmações mais ousadas, vituperavam-se as instituições com o mais audaz dos desafios” . A manifestação promovida pela Junta Liberal, em Agosto de 1909, ganhou particular importância devido à adesão de três centenas de mulheres da Liga Republicana e à recepção que receberam. Já no Parlamento, e embalada pelo discurso entusiasta de António José de Almeida, Maria Veleda gritou um ‘Viva a República’, causando enormes problemas .
Os anos de 1908 e 1909 foram “férteis em recordações inolvidáveis” e corresponderam a uma invulgar agitação de propagandista, tendo culminado com um processo judicial por abuso de liberdade de imprensa, por referências à Rainha num artigo do jornal A Vanguarda (“Carta aberta a uma dama franquista”), sendo a autora condenada à multa de 300$00, “que foi paga por meio de subscrição pública, aberta entre as mulheres republicanas” . Assumidamente livre-pensadora, integrou a comissão organizadora do 1.º Congresso do Livre Pensamento, juntamente com José França, Augusto José Vieira, Lourenço Correia Gomes e Francisco Teixeira.
O 5 de Outubro apanhou-a a dirigir a escola do Centro Republicano da Ajuda, que funcionava junto ao Palácio Real, e o ambiente então vivido marcou todos os que ansiavam pelo derrube da Monarquia: “Em toda a minha tão longa existência não tornei a experimentar (como jamais experimentei até então, a não ser quando tomei nos braços o meu filhinho recém-nascido) uma alegria tão intensa, tamanha plenitude de felicidade!” . Depois, envolveu-se freneticamente em acções de defesa e consolidação da República, participando em sessões no norte do país, nas terras mais afectadas pelas incursões de Paiva Couceiro, em 1911 e 1912. Discursou em Braga, Vila Verde, Chaves, Vidago, Tortosendo, Fundão e Covilhã, tendo viajado acompanhada de Ana Augusta de Castilho e Madalena Cândido.
Escassos anos passados, empenhou-se na Revolução de Maio de 1915, em consequência da ditadura de Pimenta de Castro, e integrou o grupo de pressão que defendeu a entrada de Portugal na Guerra, “considerando que a neutralidade em tal conjuntura nos arrastaria à perda das nossas colónias” .
O novo regime despoletou as reivindicações estritamente feministas e marcou também o início das desilusões políticas de Maria Veleda. A primeira exigência residiu no voto feminino, mas os políticos foram cautelosos na forma como a acolheram: António José de Almeida, “primeiro ministro do Interior da jovem República e fundador da ‘Liga’” , mostrou-se “de uma prudente reserva” , já que “«as mulheres portuguesas não estavam ainda devidamente preparadas para se imiscuírem nos destinos da Nação»” ; Brito Camacho, “no seu importante diário ‘A Lucta’ alfinetava de quando em quando as chamadas ‘sufragistas’” ; e Machado Santos “consentiu no seu jornal ‘O Intransigente’, vários ‘sueltos’ em que eram metidas a ridículo as mulheres republicanas” , apelidando-as inclusivamente de estafermos e mostrengos.
2.1 A Liga Republicana das Mulheres Portuguesas
Em 1907, e tal como Ana de Castro Osório, Adelaide Cabete e Carolina Beatriz Ângelo, Maria Veleda foi iniciada na Maçonaria, na Loja Humanidade, com o nome simbólico de Angústias , tendo colaborado desde então com diversas instituições paramaçónicas, com destaque para a Associação do Registo Civil e a Federação Portuguesa do Registo Civil.
Quando “a revolução em marcha engrossava dia a dia as suas fileiras” , “não podiam as mulheres portuguesas ser estranhas à ideia emancipadora que as solicitava e atraía” e Maria Veleda foi uma das protagonistas da Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, fundada em 1908/1909 e que teve como principal dinamizadora Ana de Castro Osório. E só não pertenceu à sua comissão organizadora devido à oposição de António José de Almeida, que a terá considerado “demasiadamente ‘vermelha’ e poderia por isto mesmo intimidar as mulheres, até certo ponto conservadoras que pretendessem ingressar na ‘Liga’” . Integraram a primeira direcção nomes fundamentais da luta pela emancipação feminina, como Adelaide Cabete, Carolina Beatriz Ângelo e Fausta Pinto da Gama, para além da sempre presente Ana de Castro Osório .
Nas Memórias, evoca-se o convívio com a médica Paulina Luisi e a escritora e propagandista espanhola Belén Sárraga que, “no país vizinho, tinha sofrido as maiores perseguições por mor das suas ideias libertadoras, chegando a conhecer os horrores do cárcere” , e desfilam episódios partilhados com Judite Pontes Rodrigues, Filipa de Vilhena de Oliveira, Mariana de Assunção da Silva, Maria Emília de Carvalho Gonçalves, Maria Clara Correia Alves, Ana Maria Gonçalves Dias, Lénia Loyo Pequito, Olívia da Silva Toscano Saldanha, Elzira Dantas Machado, Madalena Cândido, Alice Ogando, Leonor de Eça e Georgina de Figueiredo (professora ajudante do Centro Republicano da Ajuda e que faleceu nova, em resultado de complicações pós-parto).
Devido a divergências no seio da Liga, entre conservadoras, que Maria Veleda apelidava de ‘elite’ e gravitavam em torno de Ana de Castro Osório, e “as restantes (mais numerosas) revolucionárias” , mais identificadas consigo, a nossa professora acabou por ser escolhida para dirigir a revista A Mulher e a Criança, em 1910, juntamente com Lenia Loyo Pequito e Ana Maria Gonçalves Dias, e presidir à organização no ano seguinte. É também da sua responsabilidade a substituição daquele órgão, por ser demasiado dispendioso, pelo jornal A Madrugada, “cuja direcção assumi, e que foi durante algum tempo o arauto das reivindicações feministas – o grande amigo e defensor da Mulher” , tendo sido a líder mais visível da organização entre 1911 e 1915.
2.2 A Associação Feminina de Propaganda Democrática
Assumidamente empenhada no processo político da 1.ª República, Maria Veleda rompeu, em 1915, com a Liga Republicana, por esta se ter assumido como apartidária, e acompanhada de um grupo de dissidentes fundou, no último trimestre desse ano, a Associação Feminina de Propaganda Democrática. Tal como o nome indiciava, procurava-se a identificação com o Partido Democrático e visava apoiar a intervenção política de Afonso Costa, figura respeitada e admirada pela generalidade das militantes republicanas, feministas e maçónicas.
Tinha então 44 anos, e enquanto as principais dirigentes femininas procuravam trilhar a neutralidade e a independência partidária, numa tentativa consciente de alargar a sua influência, Maria Veleda reivindicava-se orgulhosamente como militante republicana, considerando que a mulher portuguesa se devia imiscuir na política, já que da boa ou má orientação desta dependia o futuro do país. Foi, no entanto, um projecto votado ao insucesso, tendo a AFPD sido dissolvida em Julho de 1916. Constituiu a sua derradeira actuação pública, já que desiludida com o rumo que a República trilhava, remeteu-se posteriormente a prolongado silêncio, ainda que sem abdicar das suas arreigadas convicções.
Mulher de princípios e de ideais, que atacou, através de artigos contundentes, os oportunistas e ‘adesivos’ que se aproveitaram da mudança de regime e o minaram , concluiu as suas evocações sublinhando que “a República não me concedeu favores nem a mim nem aos meus – e disso me orgulho” .
3. A educação e instrução femininas
Ainda que detentora de um discurso mais político do que propriamente feminista, Maria Veleda empenhou-se nesta última causa em resultado da situação em que a mulher portuguesa vivia, sendo-lhe interdita “quaisquer profissões liberais (com excepção da medicina e do magistério primário), assim como o acesso às repartições públicas” , e encontrando-se “submetida ao jugo do mais forte, ridicularizada, escarnecida, considerada tão somente como ‘anjo do lar’ (mísero ‘anjo’ a que, cuidadosamente aparavam as asas…)” .
Como educadora, e preocupada com a escassa instrução feminina assegurou, ainda durante a Monarquia, nos Centros Escolares Afonso Costa e António José de Almeida, o funcionamento de dois cursos nocturnos gratuitos para ensinar a ler mulheres; defendeu a educação integral para ambos os sexos; e procurou implementar as Escolas Maternais, juntamente com Ana de Castro Osório. Teceu ainda críticas ao ensino meramente teórico; denunciou a ausência de condições materiais e de salubridade na maioria das escolas; e considerando que era necessário combater as superstições, que afectavam sobretudo o sexo feminino, fundou, no âmbito da Liga Republicana, o sugestivo ‘Grupo das Treze’. Criado em 1911, era constituído simbolicamente por treze senhoras , sendo a mais nova Lídia de Oliveira, que teria então apenas 15 anos, e ostentava como distintivo uma medalha com aquele número .
Recorrendo sempre à imprensa, censurou a ausência de uma política educativa que envolvesse as raparigas, considerando lamentável que elas não fossem contempladas com uma instrução idêntica à dos rapazes, não lhes sendo proporcionado a mesma formação intelectual e física. Defensora da escola laica, Maria Veleda criticou acerrimamente a influência clerical e a educação congreganista, por serem adversárias da ciência e contrárias à razão e progresso humano, tendo a postura de livre-pensadora estado na origem de alguns dos confrontos ideológicos que manteve com a companheira e amiga Ana de Castro Osório.
Em 1914, procurou instituir a Escola Solidariedade Feminina, orientada por uma educação moderna e sem recorrer a castigos corporais. Tinha por divisas ‘A escola Solidariedade Feminina aspira à felicidade da mulher portuguesa por meio da instrução’ e ‘Educar a Mulher é contribuir para a redenção da Pátria’ e do corpo docente faziam parte Ana Augusta de Castilho, Filipa de Oliveira e Lídia de Oliveira, não tendo o projecto vingado devido ao reduzido número de inscrições.
4. A protecção à criança - a ‘Obra Maternal’
“(…) eu amo as crianças. Amo-as porque
são fracas, porque são desprotegidas…
e também porque o Futuro lhes pertence,
porque de cada uma há-de jorrar a luz que
ilumina a treva d’esta sociedade injusta e
gangrenosa”.
Desde os escritos na revista Sociedade Futura que Maria Veleda demonstrou preocupação com a sorte das crianças desfavorecidas, numa época em que “a miséria, o abandono a que muitas sucumbiam, arrastando-as à vadiagem e à delinquência, ainda não tinham encontrado na opinião pública um eco de compaixão” e em que proliferavam os infanticídios, responsabilizando-se unicamente as mulheres.
Desejosa de obter resultados práticos e perante a mendicidade que “alastrava como um cancro nas ruas de Lisboa” , sendo “frequentíssimo, principalmente de noite, encontrar-se nas ruas mais frequentadas, em plena Baixa, criaturas de ambos os sexos rodeadas de crianças esfarrapadas, esquálidas, gingando miséria que apresentavam como sendo seus filhos, e que, afinal, não passavam muitas vezes de míseras vítimas alugadas pelos pais àqueles vis exploradores da carne infantil” , Maria Veleda instituiu, no âmbito da Liga, a Obra Maternal, organismo que visava proteger e educar as crianças sem família, abandonadas ou vítimas de maus tratos, tornando-se sua presidente: “Finalmente podia empregar a minha actividade em qualquer coisa de verdadeiramente útil” .
Criada em 1909, a Obra Maternal tinha uma função essencialmente preventiva e vivia das contribuições dos seus subscritores e das récitas e quermesses que eram organizadas regularmente, tendo conseguido recolher apenas nove crianças , já que após a implantação da República muitos dos seus apoiantes foram da opinião que competia ao novo regime a protecção às crianças desvalidas. Maria Veleda assinou, e representou , algumas das peças de teatro ensaiadas com o propósito de recolher donativos e, apesar de reconhecer o alcance das medidas implementadas por Afonso Costa, enquanto Ministro da Justiça do Governo Provisório saído da revolução republicana, e pelo Padre António de Oliveira na defesa dos menores, “a quem uma defeituosa organização social infelicitava e corrompia” , não abandonou o seu projecto, mantendo-o em funcionamento enquanto pode. Acabou por ser integrado, em 1916, na Cruzada das Mulheres Portuguesas.
Dispunha de estruturas autónomas da Liga, elegendo-se anualmente as dirigentes, e a manutenção era assegurada pelas contribuições pecuniárias dos seus subscritores, quer femininos, que não tinham de pertencer obrigatoriamente àquela, quer masculinos, encontrando-se dispersos por todo o país e pelo mundo. Embora tivesse totalizado centenas de contribuintes, enfrentou continuadas dificuldades, desde a falta de espaço para albergar os seus protegidos até problemas económicos de subsistência, envidando-se todos os esforços para que conseguisse sobreviver. Organizou-se, inclusivamente, um Grupo Dramático destinado a realizar espectáculos em seu benefício, tendo sido representadas algumas peças da autoria de Maria Veleda, onde procurou fazer “teatro educativo, teatro reformador” : Redenção, que abordava o problema da mendicidade infantil e da prostituição; A Lei, que reflectia sobre o divórcio; Mulher Ideal, onde voltou a dramatizar a questão da prostituição; Único Amor, onde se condenava o celibato religioso; e A Minha Menina.
Em 1914, e depois de muita persistência junto das instâncias republicanas, obteve da Câmara Municipal de Lisboa uma casa situada na Rua Miguel Lupi, mediante pagamento de renda, onde tinha funcionado o antigo Museu da Revolução: “era um pavilhão que pertencera ao convento do Quelhas, e tinha servido de enfermaria às freiras por ocasião de certa epidemia” .
A comprovada dedicação às crianças contribuiu para a nomeação de Maria Veleda para Delegada de Vigilância da Tutoria Central da Infância de Lisboa, “a obra mais bela da jovem República” onde exerceu funções entre 1912 e 1941, ano em que se aposentou com uma reforma exígua, “que me chegaria apenas para morrer de fome” se não fosse a ajuda do filho, a viver fora da Metrópole desde 1923 . Percorreu, durante seis anos, as ruas e as zonas de Monsanto, Bairro Alto e Alfama e, quando foi nomeada ajudante de secretário, “único e último posto a que podia ali ascender” , manteve a mesma dedicação aos menores desprotegidos.
5. As actividades associativas de classe
A implantação da República evidenciou igualmente uma Maria Veleda líder das reivindicações dos professores do ensino livre, que se sentiram prejudicados com a reforma do ensino promovida por António José de Almeida enquanto Ministro do Interior. Presidiu a diversas reuniões da classe, onde combateu o favorecimento do professorado oficial e o não reconhecimento do trabalho desenvolvido pelos docentes que trabalhavam nos Centros Republicanos e outras escolas particulares, tendo, juntamente com um grupo de professoras da Liga Republicana, promovido, em Maio de 1911, a entrega de uma representação ao respectivo ministro .
Além de reivindicar a integração dos professores do ensino livre no quadro efectivo do professorado oficial, pugnou para que aqueles pudessem integrar os júris de exames e que eles fossem mistos, contestando ainda a atribuição da presidência apenas aos colegas do sexo masculino.
6. O desencanto
“Guerrazinhas acintosas como certos republicanos
dementados acenderam entre si, foram o cabo
tormentoso emque viria soçobrar a jovem e incauta
República!” .
Mas as divergências e cisões entre os políticos, a instabilidade governativa, as revoltas e revoluções, a resignação de Manuel de Arriaga, o consulado sidonista e a precariedade dos mandatos presidenciais foram avolumando a decepção de Maria Veleda, que reconhecia “que não era aquela a República que eu havia visionado” . Os acontecimentos de 19 de Outubro de 1921, com os assassinatos de António Granja, Carlos da Maia e Machado Santos, fizeram com que renunciasse, “por completo e para sempre a todas as actividades de carácter político. As desilusões tinham sido muitas e muito grandes, para que eu pudesse continuar servindo a causa, que ainda hoje me é profundamente simpática, mas que muitos utilizaram como degrau para cada qual satisfazer o seu maquiavelismo e as suas ambições” .
Desencantada, Maria Veleda abraçou o fenómeno espírita, muito em voga na década de vinte, colaborando na sua imprensa. Integrou, juntamente com Amélia Cardia, Maria O’Neill e Madalena Frondoni Lacombe, a redacção da Revista de Espiritismo, Órgão da Federação Espírita Portuguesa, cujo primeiro número se publicou em Janeiro – Fevereiro de 1927, tendo cessado essas funções, por deliberação da respectiva direcção, em Março do ano seguinte .
Morreu em 1955, com 84 anos.
Bibliografia
I – Fontes
A. Arquivo
- BN, ACPC, Colecção Castro Osório, Esp. N12/308, Cartas de Maria Veleda a Ana de Castro Osório.
B. Periódicos
- Almanaque das Senhoras;
- Ave Azul (Viseu);
- O Círculo das Caldas (Caldas da Rainha);
- O Cruzeiro do Sul (Olhão);
- O Diário Ilustrado;
- Distrito de Faro (Faro);
- Germinal (Porto);
- Gonçalves Dias;
- Heraldo;
- O Independente (Porto);
- Lisboa Elegante (Lisboa);
- A Madrugada (Lisboa);
- A Mulher e a Criança (Lisboa);
- Nova Aurora (Tábua);
- A Pátria;
- O Repórter;
- República;
- O Século;
- Sociedade Futura (Lisboa);
- O Tempo;
- A Tradição (Serpa);
- A Vanguarda.
C. Publicações de Maria Veleda
- Casa Assombrada, Edição da Empresa ‘O Futuro’, Lisboa, s/d.
- A Conquista, Lisboa, Livraria Central de Gomes de Carvalho, 1909.
- “Memórias de Maria Veleda”, República, Fevereiro a Abril de 1950.
II - Estudos
- CATROGA, Fernando: A Militância Laica e a Descristianização da Morte em Portugal (1865-1911), Dissertação de Doutoramento, Coimbra, 1988, 2 vols.
- COSTA, Fernando Marques da: A Maçonaria Feminina, Lisboa, Editorial Vega.
- ESTEVES, João Gomes: A Liga Republicana das Mulheres Portuguesas – uma organização política e feminista (1909-1919), Lisboa, ONG da CIDM, 1992.
- ESTEVES, João: As Origens do Sufragismo Português – A Primeira Organização Sufragista Portuguesa: a Associação de Propaganda Feminista (1911-1918), Lisboa, Editorial Bizâncio, 1998.
- ESTEVES, João: “A fidelidade das mulheres republicanas a Afonso Costa: a Associação Feminina de Propaganda Democrática (1915-1916)”, Leituras, Revista da Biblioteca Nacional, n.º 3, Outono de 1998, pp. 119-128.
- FIADEIRO, Maria Antónia: “Mulheres a Redescobrir – VELEDA, Maria (1871-1955)”, Boletim da Associação Portuguesa de Estudos Sobre as Mulheres, n.º 6, Junho de 1996, pp. 19-20.
- LOPES, Ana Maria Costa: O Conto Regional na Imprensa Periódica de 1875 a 1930, Lisboa, Universidade Católica Portuguesa, 1990, vol. I.
- NÓVOA, António (dir.): Dicionário de Educadores Portugueses (a editar).
- OLIVEIRA MARQUES, A. H. de: Dicionário de Maçonaria Portuguesa, Lisboa, Editorial Delta, 1986, 2 vols.
- PIRES, Daniel: Dicionário da Imprensa Periódica Literária Portuguesa do Século XX (1900-1940), Grifo, 1996.