Religião Cívica I República Portuguesa

Ernesto Castro Leal

1. Consideração inicial

A perspectiva histórica que orienta este texto é a das relações entre o Estado e a Igreja Católica, com um olhar centrado na relação entre política e religião. A mundividência laica (individualista e racionalista) manifestou-se também, logo após o triunfo revolucionário de 5 de Outubro de 1910, na reinvenção dos lugares de memória simbólicos da República. Apesar de alguma diversidade de versões ideológicas e políticas republicanas, os novos protagonistas políticos eram portadores da mesma visão messiânica prometeica, com intenção regeneracionista da nação, propondo a revolução moral, cultural e política, assente numa demopedia republicana .
Moldado pela filosofia positiva de Auguste Comte, da qual foi um dos maiores divulgadores, Teófilo Braga anunciou em 1880, na sua História das Ideias Republicanas em Portugal, a aspiração política de uma «era nova» de «revivescência nacional pela república», e considerou imprescindíveis os «estímulos conscientes», isto é, uma nova mística e uma nova liturgia cívica aos «Grandes Homens», de inspiração comteana: «É um meio de actuar sobre a apatia mental, que pesa sobre as colectividades. Antes da actividade intelectual, tão difícil de conseguir, é preciso o estímulo emocional da vibração artística […]» . Teófilo desenvolverá as suas posições na obra Os centenários como síntese afectiva nas sociedades modernas, publicada em 1884.

2. Unidade e diversidade no laicismo republicano

Os primeiros Governos republicanos, dentro do ideário político e social de forte republicanização e nacionalização do Estado e da sociedade, com derivas radicais para o secularismo e o laicismo dentro de um processo moderno de secularização e de laicidade , vão investir quer na politização do monopólio da força física (guarda nacional republicana, jovens turcos, missões civis e missões militares de propaganda republicana, sociedades de instrução militar preparatória), quer na politização do capital simbólico (símbolos nacionais, memória e história nacional, tempo e calendário republicano, heróis e grandes homens, separação do Estado e das Igrejas, laicização do ensino, educação cívica).
O aprofundamento da secularização fez-se através do culto cívico da Pátria e da religiosidade profana do Estado, com a finalidade de retirar o controlo simbólico e social da mediação eclesiástica, e até do religioso sagrado, à Igreja Católica. Valorizava-se idealmente as expressões da liberdade e da consciência individual, para a construção do Estado de direito, republicano, mas o mito revolucionário, que se verteu em múltiplos pronunciamentos militares , acompanhará permanentemente todo o regime político, inviabilizando a normalidade institucional de uma República demoliberal que, na sua Constituição de 1911, consagrava um princípio inovador, sistematicamente posto em causa: «A liberdade de consciência e de crença é inviolável» (artigo 3º, nº4).
Observou-se a concorrência da religião católica com outros lugares de legitimação cívica (veja-se os catecismos civis, os manuais cívicos, as narrativas históricas ou os argumentários da festa da árvore), provocando a autonomia de vários processos sociais legitimadores, o que retirava o carácter uniformizador e confessional do catolicismo e se assegurava, constitucionalmente, a igualdade política e civil de todos os cultos e a não perseguição por motivo de religião (artigo 3º, nº5 e nº6). Para os republicanos, a «vontade do povo» foi sempre decisiva, como escreverá Vítor Ribeiro, em 1912, nas «conquistas inauferíveis dos seus direitos e das suas liberdades, até ao advento definitivo do regime Democrático», e o «amor da Pátria», para o mesmo autor, «sobreleva a tudo, a todos os despeitos vis, a todos os mais absurdos preconceitos» .
Durante os anos iniciais da I República Portuguesa, sob o impulso de um «Estado-pedadogo», houve a tentação demasiado regalista e autoritária do Estado («desclericalização da sociedade» e laicização das relações sociais), que provocou uma «guerra religiosa» dentro da sociedade portuguesa , cujo lastro laicista e anticlerical tinha sido reelaborado desde 1870 em confronto com o clericalismo católico intransigente . Num segundo momento, a partir de 1917, sob o signo da Grande Guerra e das assistências religiosas em campanha (católica e protestante), manifestou-se uma vontade política mais institucionalista do Estado confessionalmente neutro, que foi reconhecendo a liberdade do culto público e a autonomia da Igreja Católica, nem sempre cumpridos, mas sem provocar pendências essenciais com o Estado republicano.
O reatamento das relações diplomáticas entre Portugal e a Santa Sé ocorreu a 10 de Julho de 1918, após o Presidente da República Sidónio Pais ter recebido dias antes o enviado do Papa Bento XV, monsenhor Ragonesi, e em Abril de 1919 o escolhido novo Núncio Apostólico monsenhor Achilles Locatelli entregaria as suas credenciais ao Presidente da República João do Canto e Castro, numa sessão em que ambos discursaram . Na Mensagem do Cardeal Patriarca António Mendes Belo dirigida ao Presidente da República Sidónio Pais, em 8 de Dezembro de 1918, a seis dias deste ser assassinado, está bem patente o reconhecimento pelo início dessa mudança de atitude do Estado face à religião e à Igreja Católica:
«As injustiças e violências, os atentados e perseguições, de que a Igreja Católica tem sido alvo em Portugal, desde que foi nele implantado o regime político em vigor […]; essa tão humilhante e dolorosa situação principiou de suavizar-se desde que V. Exª, Sr. Presidente, assumiu o governo do Estado, publicando desde logo, com geral aplauso, medidas importantes, e, entre elas, a que anulou os efeitos dos Decretos que impunham a alguns Bispos, Párocos e outros membros do Clero, o desterro para fora das suas Dioceses, Paróquias e até do País […], e mais recentemente, o reatamento das relações de Portugal e a Santa Sé, que haviam sido bruscamente interrompidas […]» .
Parece ser bastante sintomático, para a percepção da autonomia e da pluralidade dos diferentes processos de legitimação simbólica, política e cultural, as posições do Presidente da República António José de Almeida, reconhecido maçon do Grande Oriente Lusitano, reveladas em diversas circunstâncias do seu magistério presidencial (1919-1923), como, por exemplo, no discurso que proferiu na Sala do Congresso da República, no dia 7 de Abril de 1921, em honra dos Soldados Desconhecidos, trasladados para o Mosteiro da Batalha dois dias depois e que teriam a Chama da Pátria aí acesa permanentemente desde 9 de Abril de 1924:
«Mas se a escolha do átrio do Congresso, para exposição dos corpos dos heróis, foi acertada, a deliberação de os levar em definitivo para a Batalha traduz o melhor preito que à sua memória se podia prestar.
O Mosteiro da Batalha é, conjuntamente, uma obra de poetas, de guerreiros e de crentes […].
O crente católico pode ajoelhar e rezar, porque como casa de Deus, não a há mais pura e acarinhadora. Quem tiver outras crenças sentir-se-á comovido pelo aspecto imponente das naves, que proclamam grandeza, ou pela solidão enternecida dos claustros, que traduzem recolhimento, lenda, mistério, tudo envolvendo uma tradição que vem de longe […]. Toda a gente lá pode entrar, toda, a principiar pela própria República-Regime, pela própria República-Estado, que, sem adoptar nenhuma confissão religiosa, mas respeitando todas as religiões, não pode deixar de sentir especiais deferências por aquela que, além de ser a da grande maioria dos portugueses, tem por suprema divindade o mesmo Cristo que […], não é só o Deus dos católicos, mas também, na História de Portugal, o companheiro de armas de Nun’Álvares […]» .
Após vinte anos de interrupção, na cerimónia diplomática de imposição do barrete cardinalício ao Núncio Apostólico, agora na pessoa de Achilles Locatelli, no Palácio Nacional da Ajuda, a 3 de Janeiro de 1923, o Presidente António José de Almeida voltou a reafirmar a importância do catolicismo na sociedade portuguesa e na definição da identidade nacional, ressaltando o simbolismo da cruz de Cristo, presente nalguns momentos identitários da construção de Portugal, em terra, no mar e no ar:
«[…] a quase totalidade da Nação segue o credo católico e o Estado republicano, sem desdouro para os princípios neutrais, ou menoscabo das suas leis, já declarou um dia, por meu intermédio, e com aplauso unânime, na soleníssima cerimónia patriótica em honra dos Soldados Desconhecidos, que tem especiais deferências para com essa mesma religião, que é tradicionalmente a da grande maioria dos portugueses […].
[…] os vossos votos para que este belo país conserve, conforme dizeis, a nobre característica cristã do seu carácter e do seu génio, terão fácil realização, porque, como sem esforço verificais, os intuitos cristãos da grande massa dos portugueses são evidentes e tão assinalados que a cruz de Cristo aparece sempre com um prestígio a cada momento revigorado, através da sua história, ou nos épicos acontecimentos que determinaram a formação da nacionalidade, ou nos nossos famosos empreendimentos marítimos de há séculos, ou nos nossos magníficos feitos aéreos de há meses […]» .

3. Símbolos e ritos cívicos de recordação republicana

A intenção do republicanismo continuar o programa político e cultural da modernidade iluminista e liberal exigiu a visibilidade e o reconhecimento de um novo poder simbólico, político e cultural, que usou vários instrumentos simbólicos, entre os quais estavam a bandeira nacional (verde e vermelho, escudo das armas nacionais com 5 quinas e 7 castelos, esfera armilar manuelina), o hino nacional (“A Portuguesa”), a moeda nacional (escudo), o busto oficial (imagem de república-mulher), o calendário de feriados e de festas nacionais, a divisa oficial (“saúde e fraternidade”), a festa da árvore, o panteão nacional (em Abril de 1916, a Igreja de Santa Engrácia foi escolhida como monumento para o receber), a Ordem da Torre e Espada (a única que se manteve logo a seguir à revolução), a toponímia , a numismática ou a filatelia republicanas (colecções Ceres em 1912, 1917-1920, 1921-1922, 1923 e 1924-1926).
Durante a fase inicial da I República Portuguesa, manifestou-se o confronto, dentro da cultura política republicana, entre uma via de tendência totalizante, que seria então amplamente maioritária e tendia para a tutela do cidadão pelo Estado e do predomínio quase exclusivo de uma nova ordem profana laica (oposta à ordem divina sagrada), e uma via de tendência pluralista, que reconhecia a concorrência de múltiplas visões do mundo e de práticas espirituais e sociais, ao que não era indiferente a adesão a várias perspectivas evolucionistas . A primeira foi defendida principalmente por Afonso Costa e a segunda exprimiu-se com relevo através de José Pereira de Sampaio (Bruno), ambos envolvidos num grave desacordo ideológico (com agressão pessoal a Bruno), desde a realização do Congresso de Coimbra do Partido Republicano Português, em Janeiro de 1902.
A perspectiva evolucionista heterodoxa de Sampaio Bruno manifestou-se quando insistiu, após a revolução republicana, que o «fio da tradição» tinha de ligar-se à «trama da renovação», para que «não se produzam hiatos nem se rasguem lacunas», e, assim, uma «pátria nova quer simplesmente dizer a pátria antiga depurada, melhorada, aperfeiçoada, civilizada, progressiva», firmada «nos conceitos da razão pura» e «nas admoestações da tradição histórica» . A política religiosa inicial do Governo Provisório ou o lugar da religião na identidade nacional portuguesa não surgiram com relevo assinalável nos seus artigos políticos de 1910 e 1911.
O debate em torno das cores da bandeira nacional será o lugar essencial para Sampaio Bruno reflectir sobre a relação entre tradição e revolução. Dez dias depois da revolução, afirmou que a bandeira vermelha e verde era a «bandeira da Revolução» (rompia com a tradição nacional), correspondente ao período revolucionário e à memória republicana , e a «bandeira da Nação» (renovava a tradição nacional) tinha que continuar a ter as cores azul e branco, substituindo a coroa (monárquica) por uma estrela de ouro (republicana):
«[…] a bandeira azul-e-branca, com o seu escudo e disposição, é a única que o preto de África conhece como representativa da soberania de Portugal. […] é o símbolo de Portugal para o indígena das nossas colónias. É a única que ele conhece. Fazê-la desaparecer implica comprometer a nossa soberania colonial […]» .
Posição diferente tinha Afonso Costa, neste alvor do regime republicano, preocupado com a legitimação institucional assente numa nova ordem republicana e com a urgência de reconstruir a unidade de todos os republicanos em torno do Partido Republicano Português, fragmentado entre os finais de 1911 e os princípios de 1912, nestes principais agrupamentos políticos: Partido Republicano Português (democráticos), de Afonso Costa, Partido Republicano Evolucionista (evolucionistas), de António José de Almeida, União Republicana (unionistas), de Manuel Brito Camacho, Centro Reformista (reformistas, na realidade, radicais), de António Machado Santos, Partido Republicano Radical Português, de Adrião Castanheira, Luís Soares e Henrique de Sousa Guerra, e Integridade Republicana, de João Bonança. . Afonso Costa, no célebre discurso que proferiu no Centro Republicano Democrático de Santarém, em 10 de Novembro de 1912, insistiu, de forma dramática, na realização urgente do programa político republicano, na autoridade política exclusiva dos democráticos para o concretizar e para reivindicar a memória do histórico Partido Republicano Português, onde se deviam reintegrar todos os que se tinham afastado: «Voltem todos para onde estavam quando fizeram a República!». No momento, não aceitava o pluralismo partidário: «só mais tarde», quando estiver completada «a obra comum de realização imediata» e «aparecerem correntes diversas de ideias e princípios» . Oposta era a posição política de Sampaio Bruno, desde Novembro de 1910, em defesa do pluralismo político-partidário, onde incluía os monárquicos que aceitassem intervir sob o regime republicano .
Essa polarização de opiniões exprimia as tensões dentro do programa da modernidade, que configurava, de facto, múltiplas modernidades, ao redor da importância relativa das diferentes dimensões da existência humana (natural e sobrenatural, racional e emocional) e das diferentes concepções sobre a autonomia humana e sua relação com a construção da sociedade (homem e natureza, tradição e revolução) . Apesar do questionamento das premissas e da legitimação da ordem ontológica (do natural, do ser) e da ordem axiológica (dos valores, do dever-ser), consensualizou-se a necessidade de dotar o poder civil com mais garantias para dispor de uma esfera própria de acção política.
A 12 de Outubro de 1910, uma semana após a revolução republicana, o Governo Provisório aprovou os cinco novos feriados oficiais da República: Fraternidade Universal (1 de Janeiro), Precursores e Mártires da República (31 de Janeiro), Heróis da República (5 de Outubro), Autonomia da Pátria Portuguesa (1 de Dezembro) e Família (25 de Dezembro), acrescentando-se em 1 de Maio de 1912 um sexto feriado, o do Descobrimento do Brasil (3 de Maio), conforme convicção corrente de ter sido o dia da chegada da armada de Pedro Álvares Cabral.
Este calendário perdurou até 29 de Julho de 1929, momento em que o Governo de Artur Ivens Ferraz, dissipando dúvidas sobre os feriados oficiais, considerou manter esses seis – o 1 de Dezembro passou a evocar a Restauração da Independência em vez da anterior Autonomia da Pátria Portuguesa – e juntou um sétimo feriado, a Festa de Portugal (10 de Junho) que, desde a lei nº 1783, de 25 de Maio de 1925, era já oficialmente considerado um dia de festa nacional em honra de Luís de Camões, até então evocado, anualmente, a partir de 1911, pela Câmara Municipal de Lisboa, numa concorrência laica com as festas de Santo António, a 13 de Junho. Este ajustamento nos feriados gerais da República fez com que o mais importante feriado nacional passasse do dia 1 de Dezembro para o dia 10 de Junho.
Ao longo do regime republicano, para além dos feriados municipais, foram decretados, em diversas ocasiões, dias feriados excepcionais, inscritos na mundividência laica e patriótica liberal republicana. Entre eles, recorde-se o 20 de Abril de 1913 (2º aniversário da lei da separação do Estado e das igrejas), o 18 de Outubro de 1917 (1º centenário da execução de Gomes Freire de Andrade e de seus companheiros), 9 de Abril de 1921 (dia da trasladação para o mosteiro da Batalha dos restos mortais dos Soldados Desconhecidos) ou o 5 de Fevereiro de 1924 (homenagem a Luís de Camões).
Uma resolução do Papa Pio X, em 2 de Julho de 1911, estabeleceu oito dias santos: Circuncisão (1 de Janeiro), Epifania ou Reis (6 de Janeiro), Ascensão do Senhor (dia móvel), Apóstolos S. Pedro e S. Paulo (29 de Junho), Assunção de Nossa Senhora (15 de Agosto), Todos-os-Santos (1 de Novembro), Imaculada Conceição (8 de Dezembro) e Natal (25 de Dezembro); em meados da década de 20, junta-se o dia de S. José (19 de Março) e o dia do Corpo de Deus (dia móvel), prefazendo dez dias santos. Coincidiam com os feriados oficiais da I República Portuguesa, apenas o 1 de Janeiro e o 25 de Dezembro, apesar de evocações diferentes quanto ao primeiro.
O dia da Imaculada Conceição, padroeira de Portugal, será também feriado oficial, com o Estado Novo, a partir de Junho de 1948, e em 4 de Janeiro de 1952, após acordo entre Portugal e a Santa Sé, num ambiente político distinto do anterior, estabeleceram-se os novos feriados civis e religiosos: 1 de Janeiro, Corpo de Deus (quinta-feira, móvel), 10 de Junho, 15 de Agosto, 5 de Outubro, 1 de Novembro, 1 de Dezembro, 8 de Dezembro e 25 de Dezembro. As resistências anteriores do Presidente do Conselho António de Oliveira Salazar para estabelecer os novos feriados levaram o Cardeal Patriarca Manuel Gonçalves Cerejeira a este comentário:
«[…] a demora na solução do caso [dias santos] […] está causando reparos […]. E por outro lado, urge resolvê-la, para se não acabar de todo com o que resta de costumes cristãos no povo. O trabalho aos domingos (já remediado pelo menos na lei) e aos dias santos – afasta o povo da Igreja […]» .
O primeiro feriado oficial republicano a ser comemorado foi o 1 de Dezembro, deliberando o Governo Provisório, em 23 de Novembro de 1910, com a aprovação do projecto definitivo da bandeira nacional, que o dia 1 de Dezembro fosse também o dia da Festa da Bandeira Nacional, considerada na linguagem oficial do decreto «a representação objectiva da pátria e o precioso símbolo que resume as suas aspirações, sentimentos nobres e energias». Além da Festa da Bandeira Nacional e da Festa da Árvore, esta comemorada pelas escolas primárias com projecção no espaço das municipalidades, dentro de uma perspectiva de «naturalização» do cosmos, do homem e da sociedade, os governos republicanos aprovaram mais duas Festas Nacionais da República.
Uma dessas festas nacionais foi a Festa do Patriotismo/Festa de Nuno Álvares Pereira, instituída em 13 de Agosto de 1920, para ser celebrada todos os anos em 14 de Agosto, dia da batalha de Aljubarrota, também conhecida como Festa da Pátria e dinamizada pela Cruzada Nacional D. Nuno Álvares Pereira em articulação com o Governo, a Igreja Católica e o Exército; a outra festa nacional foi a já referida Festa de Portugal/Festa de Luís de Camões, consagrada desde 25 de Maio de 1925, para ocorrer anualmente no dia 10 de Junho, dia da morte do Poeta, que já era comemorado anualmente como feriado municipal pela Câmara Municipal de Lisboa desde 20 de Junho de 1911.

4. Consideração final

Durante a I República Portuguesa, podemos descortinar dentro do significado das várias expressões de religião civil a promoção de três objectivos essenciais: (i) inculcar ritos políticos de cidadania patriótica liberal e republicana; (ii) incentivar uma dinâmica de festividade cívica através de formas variadas de espectáculo público, em particular nas festas nacionais, com participação popular; (iii) propiciar o estabelecimento de um laço solidário entre a construção da memória colectiva e a construção da memória histórica, numa perspectiva laica.
A ritualização comemorativista de figuras ilustres ou de factos históricos pode ser um instrumento essencial na recriação das identidades nacionais, no aprofundamento da nacionalização do Estado e das massas e na construção historiográfica, permitindo, neste caso, carrear novos problemas e novas interpretações. Esta relação nem sempre se faz de forma criadora, mas como alertou em 1947 o historiador Vitorino Magalhães Godinho os «aniversários e centenários só podem ser úteis se constituírem ensejo para estudar problemas, meditar directrizes, criticar certezas dogmáticas; caso contrário, mumificam os vivos, sem ressuscitar os mortos […]» .
O problema é que, seguindo o historiador Jacques Le Goff, a memória colectiva pode estar ao serviço da libertação ou da servidão: «A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou colectiva, cuja busca é uma das actividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia […]. A memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro. Devemos trabalhar de forma a que a memória colectiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens» .

Actas do Colóquio «Poder Espiritual/Poder Temporal. As relações Igrejas-Estado no tempo da República (1910-2009»), realizado nos dias 15 e 16 de Outubro de 2009, Lisboa, Academia Portuguesa da História e Centro de História da Universidade de Lisboa.

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