XL O Renitente Degredo de João Chagas

Amadeu Carvalho Homem

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João Chagas

Era um homem alto, desempenado e bem parecido. Encontrava-se prisioneiro na cadeia da Relação do Porto quando a cidade foi percorrida pelos republicanos amotinados que fizeram a revolta de 31 de Janeiro de 1891. Daí tentou seguir todos os lances da emocionante jornada, como se estivesse num “camarote de ópera”. Ninguém teria desejado mais do que ele o triunfo daquele pronunciamento. Chamava-se João Pinheiro Chagas mas todos os democratas o conheciam, mais abreviadamente, por João Chagas.
A sua família havia emigrado para o Brasil no decurso dos confrontos entre miguelistas e liberais. Cedo se deu conta que João Chagas demonstrava extraordinárias qualidades para a missão do jornalismo. Possuía um estilo literário másculo, vibrátil, servido por uma lógica irrefutável e por imagens que surpreendiam pela sua adequação à realidade. Também fazia gala de uma pouco vulgar e aprofundada cultura. Homem requintado, talvez até um pouco dado ao hedonismo, ganhou a estima de figuras cimeiras da aristocracia do tempo, como Bernardo Pinheiro de Melo, o futuro Conde de Arnoso, que lhe franqueou a intimidade do lar e lhe devotou uma sincera amizade. Veio o Ultimato. João Chagas indignou-se, substituindo a pretérita posição de jornalista neutral - ou pelo menos não enfeudado - por uma outra mais interveniente. E como, a partir de então, o campo da sua peleja se identificasse claramente com o republicanismo, João Chagas afastou-se de muitas das suas sociabilidades habituais. Assim, deixou de frequentar o domicílio de Bernardo de Melo, para que aquele amigo não se sentisse constrangido com uma militância política que só poderia ser-lhe adversa. No Porto, fundou o combativo jornal A Republica Portugueza (sic), dando guarida aos clamores de desafronta que partiam de todas as camadas sociais e, sobretudo, realçando as exortações à revolta formuladas por militares pouco graduados. Por isso, sofreu em 26 de Janeiro de 1891 uma condenação judicial que o levou à prisão, tendo sido a partir da sua cela que seguiu o rumor da revolta portuense do dia 31. Quando esta se gorou, as autoridades monárquicas consideraram-no como um dos seus mais perigosos inspiradores. Por isso, João Chagas foi julgado em conselho de guerra e condenado a quatro anos de prisão maior celular ou, em alternativa, a seis anos de degredo.
Levaram-no então para Angola, cumprindo a sua pena entre Luanda e Moçâmedes. A audácia, que sempre revelara, acalentou-lhe o sonho da evasão. Falhou a primeira tentativa de fuga, mas concretizou uma segunda, a bordo do iate Adelaide, que o levou até ao Congo Belga, numa tormentosa travessia marítima. Daí partiu para Paris, onde foi encontrar numerosos conspiradores da jornada nortenha, como José Pereira de Sampaio (Bruno) e Alves da Veiga. Lá se inteirou das diligências feitas na pátria por José Falcão e dos rumores que davam como quase preparada uma segunda tentativa militar anti-monárquica. A sua impaciência, aliada ao desejo de tomar parte activa em todas as sedições ou pronunciamentos republicanos, trouxeram-no de volta ao Porto. Cumplicidades várias procuraram proteger-lhe a clandestinidade, mas o cerco policial estreitava-se dia a dia. O velho José Falcão fez-lhe chegar a oferta de o alojar e proteger no seu próprio domicílio conimbricense. Contudo, João Chagas não o quis tornar cúmplice de um acto que seria sempre ilegal e que poderia fazer dele a vítima da própria generosidade. Presumindo que não poderia proteger-se por muito mais tempo, regressou a Paris. Entretanto, no Porto, o seu jornal mudara de cabeçalho: como a lei proibia agora o uso público do vocábulo "república" , a folha A Republica Portugueza passou a aparecer com o nome A [espaço em branco] Portugueza ! Nele se estamparam artigos da sua lavra, sobretudo de conteúdo político. Regressou ao Porto uma vez mais, sob nome falso e com documentos sanitários forjados. Mas agora a sua boa estrela empalideceu, pois acabaria por ser aprisionado, talvez devido a denúncia.
Conduziram-no novamente para Angola. José Falcão já havia falecido. Tudo parecia perdido para a causa republicana. Em Luanda, a fortaleza de S. Miguel recebeu o presidiário nº 170 da Terceira Companhia, homem de letras, de prelos de jornal e de inamovíveis convicções, que aguentou sem pestanejar os motejos e as provocações grosseiras de carcerários torpes, rudes, de brutal atitude. Mais uma vez se constituiu um conselho de guerra para punir exemplarmente a sua evasão. Porém, já em plena sala de audiências, divulgou-se a notícia de que o Poder monárquico havia amnistiado os civis ligados ao movimento portuense. Tiveram de o soltar. Poder-se-ia imaginar que depois de tamanhos incómodos, vexames e perseguições, o antigo presidiário tinha chegado ao ponto de dar tréguas aos que tanto se tinham encarniçado para o neutralizar. Puro engano. Numa carta que por então escreveu, dirigida ao tenente Manuel Maria Coelho, encontramos esta solene declaração, espelho de uma vontade sem vacilações, temperada pela prova de mil adversidades: “ Vou tornar a ver a terra de que nos baniram. (…) Eu parto para novas lutas. Cada um de nós, os que entrámos honradamente neste pleito, tomou o compromisso tácito de o ganhar ou sucumbir nele. Temos na vida um intuito que a preenche. Queremos uma Pátria nova. Havemos de fazê-la”.

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