XXXVIII - Os Vencidos e a Política

Amadeu Carvalho Homem

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Princípios de 1888 : Francisco Manuel de Melo Breyner, Conde de Ficalho, almoça em Lisboa no restaurante “Tavares”, à Rua Larga de S. Roque, com Oliveira Martins, António Cândido e Carlos Lobo de Ávila. A mesa é farta, mesmo requintada, mas os comentários são ácidos, depressivos. O Conde fizera recentemente um discurso desalentado na Câmara dos Pares, no qual pintara a negro o futuro de Portugal: se tudo se mantivesse em tão deplorável senda, se a política continuasse a desdenhar da honradez e do imperativo moral de bem servir, se o rei teimasse em não intervir, tudo poderia estar perdido. Os restantes convivas faziam que sim com a cabeça e acrescentavam outros argumentos: pois não falhara Oliveira Martins no seu projecto de salvar o Partido Progressista das mãos grosseiras da politiquice? E não o quisera fazer através de uma lógica mais musculada e menos parlamentarista? E todos concluíam, gravemente, que a manterem-se as praxes cartistas e os processos usuais de decisão, o país – pobre dele! – não iria aguentar.
No decurso desta refeição, talvez à sobremesa, surgiu a ideia de passarem a reunir com regularidade, agregando de futuro novos parceiros de digestão e cavaqueira. A este núcleo original adicionaram-se as figuras do Conde de Sabugosa, de Bernardo de Pindela e de Luís de Soveral, todos aristocratas e amigos do príncipe real, D. Carlos. Também foram chegando Carlos Mayer, Guerra Junqueiro, Ramalho Ortigão e Eça de Queirós. E continuaram a degustar boa comida, sempre regada com melhor bebida, pois a bolsa suportava bem tamanho esforço, e o apetite, acicatado pelo espírito de tertúlia, o exigia. Lisboa habituou-se a vê-los passar, impecáveis no porte e no esmero do trajar. O Hotel Braganza, famoso pela mundanidade e pela qualidade das suas iguarias, acolheu-os na sala de jantar, repleta de lustres e de reposteiros aveludados. O Chiado, esse, preparou-lhes um festival de má-língua. E as “hortas” dos arredores da capital viram-nos frequentar botequins escusos, fumarentos, onde se provavam fritadas de carapaus miúdos, deliciosos, à luz diurna que só o Tejo sabe oferecer, ou sardinhas assadas acabadas de sair do mar azul, mastigadas com volúpia sob latadas muito verdes. A Lisboa dos jornais e do S. Carlos enfureceu-se quando tomou conhecimento de que aquele grupo de personalidades se tinha baptizado com o nome de Vencidos da Vida. Logo Manuel Pinheiro Chagas, abespinhado, lhes contestou a designação no Correio da Manhã, tentando provar que todos se poderiam apresentar como vencedores natos. Fialho de Almeida atacou-os n’Os Gatos; Eduardo Barros Lobo, o “Beldemónio” da revista A Má Língua , submeteu-os a feroz zombaria; Marcelino Mesquita e Urbano de Castro dedicaram-lhes gazetilhas irónicas. Mas os vencidos, imperturbáveis, continuaram a juntar-se e a fazer funcionar os sucos gástricos!
A Lisboa da politiquice mobilizou-se para apurar “o que eles queriam”. Murmuravam uns que se preparavam os alicerces de um novo partido político. Diziam outros que eles se preparavam para intervir concertadamente nas Câmaras e que se devia prestar atenção aos próximos actos eleitorais. D. Carlos, o vencido suplente, seguia-os do seu reduto palaciano, com a possível cumplicidade e simpatia. Todos os testemunhos dos vencidos foram unânimes na afirmação de repúdio em relação a um explícito envolvimento partidário ou à capacidade de atracção que sobre eles poderia exercer a “petisqueira política”. Contudo, considerados individualmente, os vencidos não se reviam nas tradições constitucionais da monarquia. É de supor que o exemplo da Alemanha, trazida ao primeiro plano das grandes potências por Bismarck, os tivesse fascinado. E a Alemanha era a personificação do poder pessoal, da força derramada a partir de um topo hierárquico, da rejeição das formas de representatividade parlamentar. Como se pronunciaram alguns vencidos sobre o sufrágio universal, sobre o papel do monarca, sobre o parlamentarismo? Vejamos o que declarou Ramalho Ortigão sobre o sufrágio universal: “Dentro do campo das ficções, (…) o sufrágio popular (…) é a superstiçãozinha mais catita que aí temos”. No próprio dia da aclamação de D. Carlos, Oliveira Martins observava no jornal O Tempo que a existência de um “monarca-manequim” – só faltava acrescentar "como D. Luís"… – não se conformava com as exigências dos novos tempos. Eça de Queirós, na Revista de Portugal, ponderava que o novo rei se destacava como a única força do país. Carlos Lobo de Ávila, no jornal O Repórter, sob o pseudónimo de “Viriato”, impelia o jovem monarca para o cesarismo, dizendo: “Vossa Majestade não pode sujeitar o seu governo ao capricho das votações parlamentares”. E quando mais tarde chegou a ditadura de João Franco, ela teve o indisfarçável aplauso de Bernardo de Pindela e de Luís de Soveral.
Os Vencidos da Vida não foram um grupo político organizado. Mas eles serviram à mesa uma opinião que não poderia ter deixado de calar fundo nas futuras opções liberticidas ( e trágicas!) de D. Carlos, vítima de si mesmo e certamente também dos que acabaram por o influenciar. Mesmo que tal tenha acontecido sob a luz amorável e única de Lisboa, no remanso estival de uma latada muito verde, com o mar bem azul a espreguiçar-se em frente…

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